No Brasil de Dantas
por Leandro Fortes
por Leandro Fortes
O inquérito do dossiê com as supostas contas de Lula e outros só rende ao banqueiro o indiciamento por calúnia
Dantas tem sido tratado com deferência também neste episódio ©Lula Marques/Folha Imagem
Da próxima vez, quando alguém afirmar que o Brasil é o reino do cinismo, da covardia e dos conchavos dos poderosos, pense bem antes de retrucar. A última prova, cabal, é o resultado de um ano e meio de investigação da Polícia Federal sobre o dossiê entregue pelo banqueiro Daniel Dantas à revista Veja com supostas contas no exterior do presidente Lula, de quatro ministros, do diretor-geral da própria PF e de um senador da República. Seria impensável em qualquer outro lugar que uma publicação considerada séria publicasse, como fez a Veja em maio de 2006, informações sem nenhuma comprovação, reunidas de forma suspeita por um ex-agente da CIA, e repassada por um cidadão que é réu em processo por espionagem, classificado pelo Ministério Público Federal como “chefe de quadrilha”.Seria impensável também que um ministro da Justiça, como fez Márcio Thomaz Bastos, citado entre os titulares das supostas contas não-declaradas, aceitasse se reunir às escondidas, na calada da noite, e três dias depois da publicação do material, com o acusado de ser o mentor do falso dossiê. Que o encontro ocorresse na casa de um senador da oposição intimamente ligado ao chantagista, como é o caso de Heráclito Fortes (DEM-PI). E que o convescote fosse mediado por dois deputados do partido dos principais alvos da tramóia (no caso, os petistas Sigmaringa Seixas e José Eduardo Cardozo).Seria impensável em qualquer lugar, menos no Brasil. Portanto, não espanta, nesta altura dos acontecimentos, a conclusão do inquérito do delegado federal Disney Rosseti. Na segunda-feira 10, Rosseti indiciou Dantas e Frank Holder, o ex-agente da CIA que preparou o dossiê, por calúnia, baseado na Lei da Imprensa. A Editora Abril saiu ilesa da história. Não há nada contra a Veja, concluiu Rosseti. À exceção da Folha de S.Paulo, que registrou a conclusão do inquérito de forma burocrática, o resto da mídia silenciou sobre o resultado, apesar de, à época da publicação das contas, ter repercutido o noticiário de Veja. Os principais alvos do dossiê também se calaram. Nenhuma nota de repúdio, nenhum gesto de indignação. É como se tudo não passasse de estripulias de uma criança espevitada em vez de uma jogada com claras intenções e previamente calculada: chantagear autoridades e desestabilizar ainda mais um governo mergulhado na crise.Calúnia, nos termos da lei, é o ato de atribuir a alguém falsamente fato definido como crime. Em caso de condenação, a pena prevista é de seis meses a três anos de prisão, além de multa. Pela Lei de Imprensa, e por envolver o presidente da República, essa pena pode chegar a cinco anos de cadeia. O delegado Rosseti alega ter optado por essa legislação para aumentar a pena e evitar a prescrição do caso antes do julgamento, se o Ministério Público Federal decidir denunciar Dantas e Holder à Justiça. Para não indiciar a Editora Abril, responsável pela veiculação do crime, e os autores da reportagem, o delegado ateve-se ao argumento da “liberdade de expressão”. Também levou em conta o fato de Veja ter sido processada, criminalmente, por Lacerda, seu ex-chefe e hoje diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).De acordo com o dossiê, Lacerda teria 1,1 milhão de euros em contas no exterior. Os demais seriam donos dos seguintes valores: Lula, 38,5 mil dólares; José Dirceu (ex-ministro da Casa Civil e deputado cassado do PT), 36,2 mil dólares; Antonio Palocci (ex-titular da Fazenda e atual deputado), 2,1 milhões de dólares; Luiz Gushiken (ex-secretário de Comunicação da Presidência da República), 902,1 mil euros; Bastos, 1,4 milhão de dólares; e o senador Romeu Tuma (PTB-SP), 1,1 milhão de euros. “Se eu soubesse que tinha esse dinheiro, teria comprado um presente para dona Marisa”, ironizou Lula, à época, quando soube da notícia, durante uma visita oficial à Áustria.Embora a investigação tenha durado 18 meses, Rosseti atuou no caso, de fato, por 11 meses. Isso porque, por longos sete meses, o caso ficou emperrado no Supremo Tribunal Federal (STF), nas mãos do ministro-relator Eros Grau. O processo foi parar no STF, no início do ano, ante determinação do procurador-geral da República, Antônio Fernando Souza, por envolver autoridades com direito a foro privilegiado. Somente em agosto passado, com base em um parecer do procurador-geral, Grau decidiu arquivar o caso. Entendeu o ministro não haver qualquer indício capaz de provar a existência das supostas contas no exterior. Os autos voltaram à primeira instância da Justiça Federal de Brasília e, de lá, para as mãos de Rosseti. A partir de então, as investigações resumiram-se aos casos de Lacerda, Gushiken e Dirceu, pelo fato de o trio não ter sido incluído no balaio do foro privilegiado do Supremo.Rosseti, então, entrou em contato com o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) do Ministério da Justiça para utilizar as ferramentas de acordos de cooperação mútua com a Suíça (onde haveria as supostas contas de Lacerda e Gushiken) e as Ilhas Cayman (Dirceu). Esperou por 60 dias e recebeu informações lacônicas. O governo suíço alegou impedimento legal para responder ao pedido porque, formalmente, só pode abrir esse tipo de informação se houver provas de envolvimento do suposto correntista com crimes de corrupção no país de origem. Ou seja, se o indício de corrupção for justamente a existência de contas no exterior, a suspeita morre no nascedouro. Em Cayman, não foi diferente. Nos dois casos, a PF contou com o apoio do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o órgão de inteligência do Ministério da Fazenda, para chegar à conclusão de que nenhum dos envolvidos jamais havia remetido dinheiro algum para as supostas contas levadas por Dantas à Veja.Além disso, o delegado foi atrás dos endereços brasileiros de dois dos bancos envolvidos no caso, o Delta Bank, dos Estados Unidos, e o Deutsche Bank, da Alemanha. Nas agências localizadas em São Paulo, também não conseguiu sucesso. Foi informado de que somente as agências envolvidas no caso poderiam se pronunciar sobre as contas. No relatório final, entregue ao MPF, Rosseti aproveitou para criticar a burocracia e a ineficiência dos tais acordos de assistência judiciária mútua assinados pelo Brasil com outros países. As ferramentas, embora tenham sido boladas para facilitar a comunicação e a investigação entre as justiças internacionais, atrapalham mais do que ajudam, de acordo com o parecer de Rosseti. Como último recurso, pediu aos advogados de Lacerda, Gushiken e Dirceu para estes solicitarem, em caráter pessoal, informações sobre as tais contas nos referidos bancos. Os pedidos foram feitos, mas nem os supostos detentores das contas conseguiram obter dos bancos estrangeiros informações sobre se eles próprios eram detentores de numerários nas instituições. Inacreditável.Um primeiro parêntese: O Delta Bank é uma instituição conhecida das autoridades brasileiras. Milhões de dólares de envios ao exterior feitos pelo Banestado, no maior escândalo de remessas ilegais da história do Brasil, passaram por lá. O Opportunity de Dantas, personagem central dessa trama, era useiro e vezeiro das “facilidades” do Delta. O banco de DD usou a instituição norte-americana para movimentar contas de aplicadores no Opportunity Fund, sediado em Cayman. Os gestores do fundo foram condenados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por abrigar investidores brasileiros, o que feria regras do sistema financeiro.Um segundo parêntese: Na longa disputa judicial travada com o ex-sócio Luiz Roberto Demarco, e da qual saiu derrotado, Dantas e a irmã, Verônica, executiva do Opportunity, foram acusados de forjar documentos e provas. Entre os papéis falsificados, segundo a conclusão da Justiça britânica, estavam assinaturas de clientes do fundo sediado na ilha caribenha. Dessa forma, os executivos brasileiros movimentavam dinheiro à revelia dos aplicadores. Em tese, poderiam abrir contas em nome de terceiros sem autorização.Ao Ministério Público, Rosseti alegou não ter encontrado outro crime senão o de calúnia, no caso de Dantas. Ele teria até pensado em usar a Lei de Segurança Nacional, por causa do envolvimento do nome do presidente Lula, mas achou que isso iria reforçar uma das teses de defesa usadas por Dantas, sobretudo em processos respondidos por ele no exterior: o de perseguição política por parte do governo brasileiro. Com certa freqüência, afirma ter sido extorquido em 50 milhões de dólares, em 2003, pelo então tesoureiro do PT, Delúbio Soares. Assim como até agora não provou ter pago nada ao PT, Dantas também não conseguiu se livrar da acusação de ter montado o dossiê.
Nem poderia. Além da confirmação obtida pela PF dos encontros do banqueiro com os repórteres de Veja, sobram provas da ligação de Dantas com Holder. Na edição 394, de 24 de maio de 2006, CartaCapital publicou um extrato de pagamentos no valor de 838 mil dólares ao ex-agente da CIA feitos pela Brasil Telecom em períodos em que a operadora era controlada por DD. O extrato integra o relatório de auditoria realizado após o Citibank e os fundos de pensão, principais acionistas, terem conseguido retomar o controle da empresa. Segundo os auditores, não foram encontradas comprovações dos serviços prestados por Holder à operadora de telefonia. A PF acredita em dois motivos principais para o crime. DD queria se vingar de Bastos e Lacerda, por conta da Operação Chacal. A investigação, realizada em outubro de 2004, resultou em uma devassa na contabilidade do Opportunity e na apreensão do disco rígido do computador central do banco. Em 2006, depois de a ministra Ellen Gracie, do Supremo, tê-lo mantido sob sigilo por dois anos, foi dada autorização da análise do conteúdo do hard disk (HD), com algumas limitações. O HD será analisado pela 5ª Vara de Justiça Federal de São Paulo, onde tramita uma ação contra o banqueiro e diretores da Kroll em decorrência da arapongagem, em 2002, de desafetos e concorrentes do dono do Opportunity. Na denúncia do MPF, Dantas é apontado como “chefe de uma quadrilha internacional de espionagem”.As outras autoridades teriam sido incluídas no dossiê porque DD pretendia pressioná-las. À época, o Opportunity disputava o controle da Brasil Telecom com o Citibank, a Telecom Italia e os fundos. Durante a investigação, Rosseti recebeu cópias de extratos de teleconferências e e-mails trocados na Brasil Telecom, quando Dantas estava no comando. Neles, o banqueiro trata com Holder do monitoramento de autoridades no Brasil. Coincidentemente, as mesmas relacionadas, depois, no dossiê, como detentoras de contas no exterior. Rosseti ouviu o banqueiro no Rio de Janeiro. DD afirmou ter tomado conhecimento das tais contas durante uma reunião nos Estados Unidos entre diretores do Opportunity e da Kroll. Em seguida, diz ter contado a história para os repórteres de Veja em um encontro em setembro de 2005. Os jornalistas Márcio Aith e Mário Sabino foram ouvidos formalmente pelo delegado e confirmaram a história. A Rosseti, disseram ter recebido a lista das contas, primeiro, por fax. Depois, em um envelope entregue à Editora Abril por Holder. Este último, embora indiciado, jamais foi encontrado pela PF, desde o início das investigações. O delegado pediu, inclusive, auxílio ao FBI (a polícia federal americana), sem sucesso.A participação de Holder e da Kroll Associated, empresa veterana em escândalos de arapongagem ilegal no Brasil, é outro ponto pouco esclarecido pela investigação. Formalmente, a Kroll nega qualquer participação no caso do dossiê falso e imputa toda a responsabilidade a Holder, fora da firma, segundo informação passada à PF, desde dezembro de 2004. A empresa abriu um processo contra o ex-funcionário nos Estados Unidos dois dias depois da publicação da história do dossiê, em clara estratégia de salvaguarda. Alegou descumprimento, por parte do ex-agente da CIA, dos deveres de consultor. No processo, Holder aparece, porém, como formalmente contratado pela Kroll até 28 de janeiro de 2005.Ocorre que, três dias depois, 1º de fevereiro de 2005, Holder fechou um contrato de consultoria independente com a Kroll para prestar serviços, justamente, à BrT, então sob a gestão de Dantas. Na ação de maio de 2006, impetrada em Nova York, a Kroll acusa Frank Holder de ter acertado com a Brasil Telecom um contrato paralelo para serviços de investigação. Agora se sabe o teor da consultoria e quem, de fato, pagou pelo serviço, embora tudo tenha acabado em um simples processo de calúnia. Há chances incalculáveis de Dantas se safar desta. Como de costume. Estamos no Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário