1 de novembro de 2008

O BRASIL E A CRISE


ENTREVISTA - CARLOS LESSA

"Vou horrorizar os jovens economistas. Sou favorável a centralizar o câmbio"

Em entrevista à Carta Maior, o economista defende a redução dos juros e o aprofundamento do PAC, sobretudo em investimentos sociais e na geração de emprego. Para o ex-presidente do BNDES, o governo deveria também centralizar o câmbio. "Nós temos que reforçar nossas defesas. Se perdermos 50 bilhões e tivermos, em 2009, uma balança comercial altamente deficitária, as reservas brasileiras acabam".

Para o economista Carlos Lessa, a análise das conseqüências que a crise financeira internacional pode ter sobre a economia brasileira é uma grande aula. Nesta entrevista à Carta Maior, Lessa aponta os possíveis caminhos para que o Brasil possa minimizar os efeitos da falta de crédito mundial nos setores produtivos locais, afirma que o PAC é o grande trunfo sobre a crise e projeta a centralização do câmbio no país. “A idéia do planejamento não é a idéia de uma economia de mercado: planejar é construir o futuro que você deseja pessoalmente enquanto a economia de mercado pensa no futuro que será bom para o mercado”, defende.

Ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Lessa acredita que importante para o Brasil é discutir o futuro, especialmente porque “todos os projetos de infra-estrutura de grande porte são públicos”. Autor de dezenas de livros e artigos especializados, Lessa integrou as equipes do Instituto Rio Branco, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe e do Instituto Latino-Americano e do Caribe de Planificação Econômica e Social, além de ter atuado em instituições do Chile, Nicarágua e El Salvador.

Carta MaiorA atual crise vem se estruturando desde quando?

Carlos Lessa – A crise do capitalismo é, na verdade, mais antiga que o próprio capitalismo industrial. Se nós formos olhar para o passado, encontraremos a famosa crise holandesa cujo estopim foi o preço da tulipa. Montou-se uma especulação colossal com as tulipas e a lenda é de que um marinheiro entrou numa casa onde estavam dois bulbos de uma tulipa hiper valiosa e as comeu, achando que eram duas cebolas. O fato gerou uma crise de confiança tal que houve uma quebra da bolha especulativa que havia se montado na Holanda do século 17.

As crises que nos interessam mais, no entanto, são aquelas que surgiram depois que o capitalismo industrial se instalou. É famosa a crise que vai de 1870 até 1893, que marca o início do declínio inglês e só se resolve, de certa maneira, na I Guerra Mundial. A grande depressão de 1929, que atravessou todos os anos 30, só foi superada com a reanimação da economia mundial com a II Guerra Mundial.

"Toda crise é um produto histórico único. As crises não se repetem, elas se sucedem".

Carta MaiorAs comparações com a Grande Depressão têm pipocado em muitas análises de economistas e na mídia. É correto traçar esse paralelo?

CL – Nós estamos vivendo uma crise com as mesmas proporções dessas crises do passado, porém é necessário entender que toda a crise é um produto histórico único. As crises não se repetem, elas se sucedem. Em benefício ao entendimento, eu gostaria de lembrar que, quando termina a II Guerra Mundial, há uma conferência regulatória das finanças mundiais, Bretton Woods. Ali é derrotada a sugestão de Lord Keynes de uma moeda reserva internacional gerida por um sistema plurinacional de administração. E é adotado o dólar, que se propõe a ser a reserva internacional com um argumento pragmático e altamente contundente de que, naquele momento, 90% das reservas do mundo estavam nas mãos do Tesouro norte americano e, por conseguinte, sendo o dólar conversível em ouro numa paridade definida, estava simplesmente restaurado o ouro como fundamento último de confiança das finanças internacionais em reconstrução. Em 1971, numa manobra unilateral, o Governo norte americano cancelou a conversibilidade do dólar e, a partir desse momento, o dólar virou o valor oficial de sustento.

CMOu seja, o dólar vale porque ele vale e ponto...

CL – E a confiança é de que ele vale porque ele vale e isso permite que ele seja o fundamento de todas as reservas em última instância do sistema financeiro mundial. A China, que é o emergente mais dinâmico do planeta, acumulou imensas reservas em títulos do Tesouro norte-americano. Os bancos centrais europeus tentaram evoluir até para uma moeda única, o Euro, porém, os bancos centrais têm suas reservas em bônus do Tesouro norte-americano. Então, esse valor que se auto-sustenta é o fundamento de todo edifício financeiro do mundo. E um detalhe extremamente importante, isso representa um instrumento de poder incomensurável porque ser o fundamento último de sustentação do sistema financeiro mundial é mais importante pros Estados Unidos que ter um dispositivo militar que é – sozinho – maior que os nove outros orçamentos militares que o sucedem. Da mesma maneira que é mais importante que dominar corações e mentes desde Walt Disney até os enlatados, passando pelas agências de notícias. Eu diria que dos três fundamentos do poder norte americano, inquestionavelmente, o instrumento mais importante é o dólar.

"A longa prosperidade americana foi acompanhada de uma equação financeira duvidosa: déficit fiscal e desequilíbrio na balança comercial".

CMA prosperidade estancou quando exatamente?

CL – Esse instrumento permitiu que, nos últimos 25 anos, os Estados Unidos vivessem uma política curiosa em que houve um certo despojamento da sua economia real em nome de um imenso edifício de prosperidade e um imenso edifício de ampliação do padrão de vida de seus nacionais. Essa longa prosperidade norte-americana, que teve pelo menos um quarto de século de intensa e inequívoca prosperidade, foi acompanhada de uma equação financeira duvidosa. Um déficit fiscal e um desequilíbrio na balança comercial permanentes. Porém, tanto o déficit comercial quanto o déficit fiscal eram modos pelos quais era possível, com emissão de dólares e emissão de títulos nominados em dólares, dar sustentabilidade a esse processo.

Eu diria que os principais protagonistas deste processo e aqueles que mais prosperaram com ele foram os bancos e as grandes organizações financeiras norte americanas. Ganharam uma expressão mundial e se desdobraram por todos os recantos acompanhando um discurso geopolítico que surgiu depois da queda do Muro de Berlim. A história acabou e agora iremos para a prosperidade prometida que é o fim de todas as guerras e é o império do mercado como o grande e único princípio de regulação mundial. Isso foi particularmente importante para o sistema financeiro que, curiosamente, se desregulou completamente.

CMQual lição se pode tirar da crise e das teorias sobre a desregulamentação do mercado que agora vão por água abaixo?

CL – Existe uma coisa que qualquer economista aprende no segundo período de formação que é uma irresponsabilidade permitir que haja uma criação de moeda escritural a partir da possibilidade dos bancos emprestarem 100% dos depósitos que recolhem. Porque, se houver quem tome isso em empréstimo, como o dinheiro será devolvido aos bancos, a sucessão de emissões de moedas é infinita e o sistema geraria uma quantidade ilimitada de moeda escritural. Por isso mesmo, desde o século 18, se previne esse risco estabelecendo regras pelas quais o sistema bancário é obrigado a manter certos percentuais de recursos em caixa ou certos percentuais dos depósitos que obtém sob a forma de depósitos em um Banco Central. Isso para reduzir essa geração de dinheiro escritural. Só que os bancos, no ambiente desregulado dos anos 80 e 90, conseguiram criar um neologismo chamado produto. O banco deixou de operar empréstimos e passou a dispor de produtos. E os produtos não ficaram limitados por nenhuma regra significativa.

"Nos Estados Unidos, já há quem fale num número do qual o Tio Patinhas gostaria muito. Um quatrilhão".

CMNa prática, isso gera o quê?

CL – Eu vou passar os números do Bank for International Settlements, que é a fonte mais confiável para tentar ter uma idéia do tamanho da criação desses produtos. A economia real, ou seja, a economia que corresponde aos processos que, em última instância, dominam a natureza e multiplicam formas de energia e o fluxo de produtos e bens de serviços, é estimada para todo o mundo entre 57 trilhões e 65 trilhões de dólares. Isso seria a economia real. Sobre ela, existe um patamar chamado ativos financeiros. Eu vou sintetizar os ativos financeiros denominando de dívidas primárias de empresas, de famílias e de governos. Os ativos financeiros andam em torno, ainda na estimativa do International Settlements, de 130 a 140 trilhões de dólares.

Bem, sobre isso, vêm os derivativos, os produtos, que são de uma engenhosidade e de uma complexidade crescente e estão estimados em 640 trilhões de dólares. Porém, nos Estados Unidos, já há quem fale num número do qual o Tio Patinhas gostaria muito. Um quatrilhão. Foi a primeira vez que eu ouvi quatrilhão sendo usado por alguém que não fosse o Tio Patinhas.

CMAlan Greespan disse recentemente estar “em estado de descrença e choque” e reconheceu publicamente que errou durante o período em que comandou o Banco Central estadunidense. Gente como Greespan não viu a crise chegando?

CL – Eu vou construir uma imagem que é muito singela e corresponde a nossa experiência quando crianças de montar um castelo de cartas. Quanto mais alto, é mais fácil ele cair ou cair uma sessão inteira. E todos acham que um ventinho de alguém mexendo em uma porta já coloca em risco o castelo. A imagem do castelo me permite construir a seguinte hipótese. Se eu tivesse um tubo de Araldite, eu poderia construir um castelo de cartas com dezenas de andares. Cola de Araldite é impecável e isso nas relações financeiras é a confiança recíproca que existe entre os agentes. Fidúcia, confiança, não é certo? Se eu mereço a confiança dos meus pares, eu tenho condições para criar um produto e comercializar esse produto. E o meu produto se incorpora às potencialidades de quem o detém para, sobre ele, emitir outros produtos.

É um pouco como se fosse uma seqüência, a empresa pode emitir ações, alguém pode adquirir ações e emitir fundos de ações, os fundos de ações podem por sua vez dar origem de um fundo de fundos. Eu estou contando a história pelas ações, mas podem ser contratos na bolsa de mercadoria futura, podem ser operações, eu posso até combinar ações e contratos de futuro. Poso fazer o que eu quiser, se houver confiança, se tiver assinatura. A Sadia não aplicou 250 milhões de dólares da sua reserva no banco americano Lehman Brothers? Valeu até o momento em que pfff..., o Lehman Brothers sumiu. Virou pó.

"As crises são parceiras da história. No sentido de que dão origem a novas hierarquias, a novas configurações.."

O que eu quero dizer é o seguinte. Pense nos antigos que praticavam alquimia. Imagine que a crise é uma perversa alquimista que converte cola de Araldite em cuspe. Isso significa que todo esse enorme edifício começa a se colocar sob suspeita. Eu disse que nenhuma crise é igual à outra, historicamente elas são sempre muito diferentes e se resolvem de formas diferentes. Porém, a verdade é que a humanidade, depois de uma grande crise, nunca reproduz as configurações anteriores. Num sentido muito amplo, as crises são parceiras da história. No sentido de que dão origem a novas hierarquias, a novas configurações, novos padrões de comportamento. Mas não é um parto sem dor. A única coisa que se pode afirmar sobre essa crise é que não passaremos pela dor de uma guerra.

CMComo a economia que deu inicio à queda do castelo de cartas consegue estar, no final das contas, mais forte que o resto do mundo?

CL– Nós estamos vivendo um paradoxo que é impressionante, mas ao mesmo tempo expressa o que é o significado do dólar como instrumento de poder. Vinte e seis moedas do mundo se desvalorizaram em relação ao dólar sendo que a moeda que mais desvalorizou foi, infelizmente, o real. Vinte e seis moedas! Aí você dirá é uma crise que começa nos Estados Unidos e que golpeia de maneira poderosíssima pilares fundamentais do edifício financeiro mundial, não é certo? Ela começa no subprime, migra para os fundos imobiliários, passa pelo desaparecimento da maior seguradora do mundo, os bancos de investimento literalmente desapareceram e os que sobreviveram agora vão virar bancos comerciais, a bolsa de valores de Nova Iorque acumula perdas que também só o Tio Patinhas conhece a magnitude.

Agora, com tudo isso, o dólar se valoriza em relação às maiores moedas do mundo. Isso é, aparentemente, um enorme paradoxo, não é mesmo? Mas não tem nada de paradoxal nisso. A imensa expansão da economia norte americana se deu por uma aquisição mais ou menos generalizada de ativos e aplicações financeiras em escala mundial. Na medida em que balança o centro do castelo de cartas e surge uma crise de liquidez, o que os perdedores são obrigados a fazer? Reintegrar os dólares que os Estados Unidos haviam mandado para fora. Assim, o real está se desvalorizando em uma velocidade razoavelmente assustadora porque um pedaço muito grande da nossa bolsa estava com aplicadores estrangeiros. É que, rigorosamente, na seqüencia desta crise, haverá uma dúvida generalizada de confiança na capacidade de se gerir o mundo com uma instituição como o dólar e com um padrão de gestão típico deste passado recente.

Abre-se uma crise geopolítica colossal cuja preliminar foram as declarações do primeiro-ministro francês e do presidente da Rússia de que é necessário um novo Bretton Woods, para reorganizar o sistema de reservas internacionais. Muito bem, eu vou parar aqui no que diz respeito à crise mundial.

"No Brasil, a primeira e mais direta manifestação desta crise acontece na balança comercial".

CMA grande discussão do momento é se a queda do castelo de cartas atingirá o Brasil também...

CL – Pois bem, se o processo de crise financeira fosse apenas a desmontagem do castelo de cartas, haveria a desaparição de imensas fortunas que estão no território da ficção, são fumaça. Se a base produtiva permanece intocada, se o volume de empregos se preserva, se as relações comerciais estabelecidas existem, se as estruturas de comercialização não forem danificadas, o mundo pode continuar a viver com suas glórias e suas mazelas. Porém, essa crise tem variadas incidências sobre o circuito real. Porque o castelo de cartas, apesar de ser ficção, é inerente e indispensável ao funcionamento da própria economia real.

No Brasil, a primeira e mais direta manifestação desta crise acontece na balança comercial. Nós estávamos começando a viver um ciclo expansivo dos investimentos com importações de máquinas e equipamentos e nós estamos enfrentando uma queda significativa nos preços dos nossos principais produtos de exportação. O que não quer dizer uma situação crítica para os produtores primários, porque uma desvalorização cambial gera uma receita em reais confortável. Mas, do ponto de vista do país, a nossa receita cambial sofre um baque pesado. Nós já vínhamos com problemas iniciais de balanço comercial e isso vai se agravar muito nos próximos anos. Quanto eu não sei, mas não será pouco.

A crise mundial é uma crise de liquidez. Ninguém sabia ao certo a extensão que organizações brasileiras ou organizações sediadas no Brasil estavam atreladas ao sistema de crédito internacional. Porém, sabe-se que 10% das operações bancárias dos bancos privados brasileiros estão apoiadas em financiamentos externos. Você tem um problema sério de financiamento das exportações e um problema sério em toda cadeia de crédito que sustenta o esforço comercial brasileiro.

"Ninguém tem a menor idéia da extensão em que as organizações economias brasileiras entraram no jogo mundial de especulação".

CMO senhor disse que ninguém sabe ao certo a extensão do atrelamento de organizações brasileiras ou organizações sediadas no Brasil ao sistema de crédito internacional...

CL – É uma caixa preta. Eu vou tomar a Aracruz como referência. Estoura uma notícia de que a Aracruz teria perdido 1,5 bilhão de reais. Esse primeiro anúncio fez com que as ações da Aracruz virassem pó aqui e em Nova Iorque também. O grupo Antônio Ermírio de Moraes declarou que não ia mais comprar um parcela expressiva das ações da Aracruz Celulose, parece que isso tem implicações até em um projeto no qual o Rio Grande do Sul estaria interessado. Os bancos se reúnem para discutir com a Aracruz um esquema e aí o resultado saiu já na mídia. O prejuízo não era mais de 1,5 bilhão de reais, mas de 2,5 bilhões de dólares.

Ninguém tem a menor idéia da extensão em que as organizações economias brasileiras entraram no jogo mundial de especulação. O que se diz é que 200 grandes empresas brasileiras estão com problemas deste tipo. Quais são? Às vezes elas próprias não sabem.

CMEntão como ficam os planos da iniciativa privada no Brasil?

CL – Eles vão, muito provavelmente, dar um tempo. Haverá uma tendência à contração do investimento privado, estou falando em investimento do ponto de vista macroeconômico, não estou falando do investimento como aplicação financeira. Eu não preciso lembrar que a taxa de investimento macroeconômica do país está muito baixa, em torno de 21% do Produto Interno Bruto. Historicamente, quando o Brasil está bem, esta taxa fica em torno de 24 ou 25% do PIB. Ela vinha melhorando nestes últimos anos, porem não chegou ainda aos 25%, que seriam a nossa garantia de reprodutibilidade. O processo de crescimento que a economia brasileira viveu, provavelmente, vai ser interrompido por esse recuo empresarial.

"O PAC é intocável, tem que colocar dinamismo no Programa".

CME o Plano de Aceleração do Crescimento?

CL – Eu digo para investir no PAC porque é um enorme programa de usinas elétricas, de petróleo, de construção naval, de reconstrução de estradas, recuperação de portos. Eu gostaria que fosse um grande programa de metrôs e trens urbanos. Tinha que se lançar um grande programa para municípios e estados saírem por aí construindo escolas, tinha que se elevar o salário dos professores. Professor ganhando mais pode comprar mais goiabada e a fábrica de goiabada produz mais. Nós temos que mudar o modelo que o Brasil viveu, não dá para segurar o Brasil nesse festival de dívidas das famílias de classe média. Se eu pudesse resumir minha opinião sobre isso, diria que o PAC é intocável, tem que colocar dinamismo no Programa.

Segundo, as administrações municipais devem ser amparadas em programas de melhoria da rede escolar e da rede primária de saúde. As administrações estaduais devem ser apoiadas para melhorar os programas de saneamento básico. O salário básico do pessoal de educação deve ser elevado. O gasto público tem que aumentar adoidado para segurar esse pepino. Porque nós estamos segurando esse pepino em cima da ficção, da riqueza fácil em cima da dívida das pessoas. Não é da produção. Agora se, por exemplo, todo o pessoal da rede primária de educação tiver um salário melhor, se os prédios escolares forem melhorados, os hospitais e os postos de saúde também, você está fazendo o quê? Bom, você está consumindo coisas que existem dentro do Brasil, que é mão de obra brasileira que está disponível, o cimento, o aço, a madeira que a gente tem. Não temos grandes desafios tecnológicos, temos desafio de coordenação de programa.

CMÉ o investimento público que vai deixar o Brasil longe da crise, então?

CL - O PAC significa uma retomada do investimento público, que poderia ser um sinal forte para que setores da economia brasileira preservassem seus investimentos. Porém, o nosso ministro do Planejamento já declarou que vai meter a faca no PAC, cortar o que for necessário. Não foi dado ao país um sinal inequívoco de que o PAC será preservado. A verdade é que nesse ano só 40% do que foi programado foi realmente gasto. Num cenário em que a confiança está enfraquecida, o discurso ambíguo só faz aumentar a desagregação da cola que é a confiança. E eu acho que esses investimentos devem ser sociais. Tentar injetar novamente na economia brasileira algum horizonte possível de defesa do nível de emprego, isso é fundamental.

CME existe dinheiro para tanto investimento?

CL - Sim. Tem que empurrar o juro para baixo. Vocês sabem quanto o Brasil esta gastando em juros? O Dr. Henrique Meirelles paga 170 bilhões de juros, enquanto todo o programa de educação do país não chega a 40 bilhões. É o festival financeiro. O Meirelles reduziu os depósitos compulsórios e os bancos aumentaram a compra de títulos do Tesouro Nacional e não emprestaram. Você não resolve isso por um mecanismo financeiro.

Uma coisa que a gente aprende em economia: com uma corda eu te enforco. Se eu te puxar, eu te enforco. Mas com uma corda te empurrando, eu não te levo para lugar nenhum. Entende? O crédito é uma corda. Quando você está eufórico, você aperta a corda e diminui a euforia. Mas quando o pessoal está deprimido, você pode empurrar crédito à vontade que não há recuperação. Pegou a imagem da corda?

"Você acha que dá para segurar a economia brasileira vendendo automóvel em 90 prestações? A resposta é não".

CMO senhor fala bastante sobre o endividamento familiar brasileiro. Em que medida esse fenômeno tem relação com a crise mundial?

CL – Enquanto, nos Estados Unidos, a bolha de crédito foi ao redor dos empréstimos imobiliários que foram comprados com a alta de preços dos imóveis e uma expansão da margem de financiamento e, logo, de endividamento das famílias, no Brasil nós temos uma bolha que eu chamo de Casas Bahia. É o seguinte, as delícias do sistema de Tabela Price combinadas com longos períodos de pagamento permitem, pela matemática de juros compostos, construir um juro embutido elevadíssimo.

Nós crescemos muito em cima de endividamento familiar. Estavam vendendo automóvel em 90 prestações sem entrada no Brasil, com Tabela Price. Como as pessoas não sabem matemática financeira, não sabem que a Tabela Price é construída por juros compostos. Não sabem que, quanto mais dilatado o prazo, mais alto é o juro efetivo que é cobrado. Há um endividamento em massa das famílias brasileiras em cima do automóvel. Há um mês, eu estive em Juiz de Fora, uma cidade que tem 520 mil habitantes e 140 mil veículos. É um veículo para menos de quatro habitantes da cidade. Então, não acho que seja correto apoiar carteira de montadora de veículo, por exemplo. Você acha que dá para segurar a economia brasileira vendendo automóvel em 90 prestações? A resposta é não.

Você vai segurar isso com o quê? Com o BNDES? O BNDES não segura. Não pode substituir os milhões de pessoas que compram automóvel a prazo. É aquela experiência que todos já viveram. Tem um lugar que vende alguma coisa em oito prestações sem juros. Você vai com dinheiro e diz que quer pagar à vista. Não tem desconto. Sabe qual é o significado disso? Eu não estou interessado em vender a coisa, estou interessado em que você se endivide. E pague o juro embutido colossal nas prestações, eu quero você como devedor. Aí as Lojas Americanas, as Casas Bahia se convertem em financeiras. Entendeu?

"Vou horrorizar os jovens economistas com o que vou dizer...Sou favorável a centralizar o câmbio".

CMO senhor poderia resumir uma programa de curto prazo para a economia brasileira frente à crise?

CL – Eu vou horrorizar os jovens economistas com o que eu vou dizer, mas eu sou um velho economista, um dinossauro e posso dizer essas coisas. Eu sou favorável a centralizar o câmbio, ou seja, todas as operações cambiais no Brasil passam a ser realizadas pelo Banco do Brasil. Todas. Significa dizer o seguinte, abre-se um período de registro para que todas as entidades brasileiras declarem suas posições em dólar e nas diversas modalidades que interessam. O Banco Central comandará, então, a administração dessas operações cambiais. Por uma razão muito simples, porque a blindagem que o país dispõe são as reservas de dólares, as reservas internacionais brasileiras.

Eu quero ser o mais otimista possível. Se nós perdermos 50 bilhões e tivermos, no próximo ano, uma balança comercial altamente deficitária as reservas brasileiras acabam. Ponto. Aí tem o segundo problema. Há um festival de ingenuidade praticado no país sobre como enfrentar essa crise. E eu acho que, no momento, nós temos uma franquia ideológica para fazer o que nós acharmos que deve ser feito. Estão absorvendo ações nos bancos, proibindo distribuição de dividendos, demitindo e reduzindo salários dos executivos dos bancos e isso tudo em um dos paraísos da liberdade, na Inglaterra, país que deu início a isso tudo com a senhora Thatcher.

"O governo norte americano vai indenizar a Sadia pelos 284 milhões de dólares que perdeu com o Lehman Brothers?"

Eu também não devolveria dinheiro de especulador que veio para o Brasil. É quebra de contrato? É! O governo norte americano vai indenizar a Sadia pelos 284 milhões de dólares que perdeu com o Lehman Brothers? É risco de mercado. Resumindo, existem duas questões, com tempos históricos diferentes para o Brasil. Uma é a discussão de como é que nós vamos segurar o emprego e como nós vamos preservar minimamente o crescimento da nossa economia. É uma questão de discutir uma coisa que saiu de moda chamada projeto nacional. Não basta botar o Mangabeira Unger a pensar nisso que não sai projeto nacional dele. Ou a sociedade civil discute isso, ou não dá.

Segundo, a curto prazo, nós temos que reforçar nossa defesas. E por isso eu sou completamente favorável à centralização do câmbio. E isso é um neologismo para cobrir moratória. Na verdade, é uma moratória.

Mais de 900 milhões de pessoas passam fome no mundo, diz ONU

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da Folha Online

O número de pessoas com fome no mundo subiu de 850 milhões para 925 milhões em 2007, por causa da disparada dos preços dos alimentos, anunciou nesta quarta-feira em Roma o diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Jacques Diouf.

"O número de pessoas subnutridas antes da alta dos preços de 2007-2008 era de 850 milhões. Este número aumentou durante 2007 em 75 milhões, alcançando os 925 milhões", declarou Diouf em audiência nas Comissões das Relações Exteriores e de Agricultura do Parlamento italiano.

Stephen Morrison - 06.jan.2008/ Efe
Equipe da Cruz Vermelha distribui alimentos, em acampamento de refugiados no Quênia
Equipe da Cruz Vermelha distribui alimentos, em acampamento de refugiados no Quênia

O índice FAO dos preços dos alimentos teve aumento de 12% em 2006 em relação ao ano anterior, de 24%, em 2007, e de 50%, durante os sete primeiros meses deste ano, acrescentou Diuf.

"É preciso investir US$ 30 bilhões por ano para duplicar a produção de alimentos e acabar com a fome", acrescentou. Diouf afirmou que "o desafio é de grandes proporções e é necessário dar de comer a 9 bilhões de pessoas em 2050".

Segundo ele, este valor é "bastante modesto" se comparado às somas desembolsadas pelos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) em incentivo à agricultura (US$ 376 bilhões) ou aos gastos com armamento (US$ 1,2 trilhão), em 2006.

O diretor-geral da FAO reiterou que as previsões indicam que, mesmo que a produção de cereais no mundo melhore, os preços se manterão estáveis nos próximos anos e a crise dos alimentos se prolongará nos países pobres.

Metas contra a fome

Os países membros da FAO se comprometeram durante uma cúpula no início de junho em Roma a reduzir pela metade o número de pessoas que sofrem de fome até 2015, apesar da crise de alimentos, segundo a declaração final desta reunião.

Este texto, obtido após árduas negociações, reitera as conclusões das cúpulas sobre alimentação de 1996 e 2002: "Alcançar a segurança alimentar" e "reduzir à metade o número de pessoas subnutridas até 2015, no máximo".

Em Roma, Diuf considerou que, com as tendências observadas hoje, "esta meta seria alcançada em 2150 em vez de 2015". Na cúpula de Roma, os doadores se comprometeram a conceder mais de US$ 6,5 bilhões para a luta contra a fome e a pobreza.

Miséria

Em julho, no ápice da crise alimentar no mundo com o início da escalada dos preços dos alimentos, a ONU e o Banco Mundial haviam alertado contra o avanço da miséria.

Ali Ali - 11.ago.2008/ Efe
Palestinos recolhem sacos de alimentos no centro de distribuição da ONU, em Gaza
Palestinos recolhem sacos de alimentos no centro de distribuição da ONU, em Gaza

A alta dos preços dos alimentos ameaça reverter todos os avanços globais com desenvolvimento e levar 100 milhões de pessoas em todo o mundo para baixo da linha de pobreza, advertiram no secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), Ban Ki-Moon, e o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick.

A declaração de ambos foi feita na ilha de Hokkaido, no Japão, onde aconteceu a reunião de cúpula anual do G8 (grupo dos sete países mais industrializados do mundo mais a Rússia).

Na ocasião, Ban e Zoellick cobraram dos países do G8 uma ação urgente para combater a atual crise e para prevenir futuras altas nos preços dos alimentos.

Segundo o secretário-geral da ONU, o mundo enfrenta três crises simultâneas e interligadas - dos alimentos, do clima e de desenvolvimento --para as quais são necessárias soluções integradas.

"Nossos esforços até agora têm sido muito divididos e esporádicos. Agora é a hora de termos um enfoque diferente", afirmou Ban.

"A ONU está pronta para ajudar com todos esses desafios globais", disse. Segundo ele, "todo dólar investido hoje equivale a dez amanhã ou cem no dia seguinte".

Com agências internacionais

Sobre a crise


Robert Kurz

ENTREVISTA À REVISTA ON-LINE ?TELEPOLIS?

Robert Kurz

ENTREVISTA À REVISTA ON-LINE ?TELEPOLIS?

(Hannover, Alemanha)

Sr. Kurz, o senhor já tinha dado uma entrevista à ?TELEPOLIS? em 2002, após o colapso da new economy. O que é que mudou desde então?

Então rebentou a bolha financeira especial do sector das dot-com, que estava astronomicamente sobrevalorizado. O respectivo sector do ?novo mercado? na bolsa foi liquidado, o que levou a um crash geral das acções. Com o corte desta veia diminuiu correspondentemente a reciclagem do dinheiro das bolhas financeiras na chamada economia real (investimentos, construção, consumo), ocorrendo uma curta fase de recessão ou estagnação da conjuntura mundial. Fez-se face a esta crise parcial com uma corrida dos bancos centrais à redução dos juros, sobretudo através da oferta excedentária de dólares, sob a égide de Alan Greenspan. Deste modo começou uma nova e muito maior bolha financeira, a célebre bolha do imobiliário, nos EUA e em partes da Europa e da Ásia. Uma vez que subiram extraordinariamente os preços de todo o tipo de imóveis, foi possível hipotecar vivendas e apartamentos para obter empréstimos, que animaram o consumo e o investimento numa amplitude muito maior do que no caso das bolhas financeiras anteriores. Assim se alimentou uma conjuntura de deficit global, que expandiu fortemente o circuito do deficit do Pacífico, de exportação asiática (como parte da estratégia transnacional dos conglomerados empresariais) de sentido único para os EUA, e que esteve na base do ?milagre do crescimento? da China e da Índia. A partir da 2005 também a conjuntura de exportação europeia beneficiou, não em último lugar o sector de construção de máquinas alemão. Os índices de acções rapidamente subiram de novo por todo o mundo até aos altos níveis anteriores. Para um pensamento positivista, que se atém aos ?factos?, abstraindo do contexto, já parecia que se abria uma nova era de prosperidade pelo século XXI adentro. Agora, ao contrário de 2002, não rebentou uma simples bolha especial. A crise das hipotecas estendeu-se a todo o sistema bancário e creditício, e colocou fundamentalmente em questão o posterior refinanciamento das montanhas de dívidas globais acumuladas nas últimas décadas. Isto é muito mais dramático do que o anterior colapso do segmento da new economy. Por isso também as suas repercussões cairão drasticamente sobre a conjuntura mundial e não se poderá tão facilmente reverter a queda das cotações das acções num novo movimento ascendente de longo prazo.



Faz-se muitas vezes a acusação de que alguns maus gestores, com a sua avidez e frequente falta de carácter, seriam os culpados da crise mundial dos mercados financeiros. Outros entendem que a crise tem causas estruturais, ligadas à crescente dificuldade de valorização do capital. Pode dar-nos a sua opinião sobre a presente crise financeira?

A busca de culpados subjectivos é o modo predilecto de a razão capitalista reagir à crise objectiva, porque o sistema de fim em si mesmo da ?valorização do valor? e as condições de vida por ela determinadas constituem o fundamento histórico desta razão e surgem-lhe como ?dados naturais?. As contradições são empurradas para a ?ética? individual. É aqui que se agarram as tradições ideológicas, por exemplo o anti-americanismo e o anti-semitismo. A crise é então reduzida a supostas qualidades negativas de ?culturas? ou sujeitos colectivos. Mas mesmo os que falam de ?causas estruturais? frequentemente não se desprendem deste modo de ver. Pois em regra, quando se fala de ?estrutura? e de ?sistema?, não se refere o capitalismo como tal, mas apenas um determinado ?modelo?, um determinado modo de moderação e regulação do contexto da forma capitalista cegamente pressuposto. É assim que presentemente se responsabiliza o ?modelo anglo-saxónico? pela crise. Mas não se trata aqui de um ?modelo?, que pudesse ser substituído por outro sobre as mesmas bases, mas da própria lógica da valorização, seja qual for o modo de regulação ou a ?política económica?. Segundo Marx, a ?substância? do valor e da valorização (mais-valia) é o dispêndio de energia humana abstracta nesta forma social. A força de trabalho, porém, só pode ser utilizada ao nível do standard de produtividade em cada caso posto pela concorrência. Daí decorre uma auto-contradição sistémica, que se vai manifestando numa escala histórica crescente. Quanto maior se torna a força produtiva com a cientificização, tanto menor é a substância de valor em cada mercadoria e maiores os custos prévios de produção. O movimento desta contradição leva a que os mercados tenham de crescer ininterruptamente e a valorização se torne cada vez mais fortemente dependente do crédito, como antecipação de mais-valia futura. Esta contradição culmina na Terceira Revolução Industrial da microelectrónica. O crescimento já só prossegue através dum endividamento crescente a todos os níveis, ou seja, através de uma cada vez maior antecipação de mais-valia futura, que realmente nunca mais se poderá realizar, porque o crescimento da produtividade esvazia a substância do valor. A ?super-estrutura financeira? começou já nos anos 80 a desacoplar-se da produção real de mais-valia. Desemprego em massa, subemprego e precarização, por um lado, e expansão do ?capital fictício?, por outro, constituíram as duas faces da mesma moeda. Desde os anos 90 começou o processo de reciclagem do capital das bolhas financeiras na economia real. A produção e o consumo passaram a ser suportados cada vez menos por lucros e salários reais, e cada vez mais por rendimentos das subidas fictícias de valor no plano da circulação (compra e venda de títulos financeiros). Isso provocou a ilusão óptica do crescimento conjuntural, que em todo o caso ia de par com o insuflar das bolhas financeiras. A cisão social entre crescente ?riqueza abstracta? aparentemente sem limites e pobreza em massa precarizada ocorreu perante este pano de fundo. A compacta cadeia de crises financeiras desde o fim dos anos 80 era uma indicação do carácter capitalistamente improdutivo deste desenvolvimento. Com a actual nova qualidade da crise financeira também nesta perspectiva se atingiu o ponto culminante. A ?fusão nuclear? em curso no sistema de crédito dificulta o insuflar de novas bolhas financeiras, ou torna-as mesmo impossíveis. O novo excesso de moeda dos bancos centrais já não alimenta indirectamente a conjuntura, mas limita-se a administrar a massa falida da economia das bolhas financeiras.



O rebentar da bolha do imobiliário foi uma crise já há muito tempo prevista por alguns economistas. A política, depois de durante anos ter ignorado as reflexões contra o negócio da especulação, mostra-se agora surpreendida. É ingenuidade ou há aqui uma estratégia escondida?

Os economistas da ?fracção Cassandra?, de que agora se fala, chamaram de facto a atenção para o potencial de crise da bolha financeira, mas viram aí apenas um ?desenvolvimento errado?, ou um ?excesso?, sem reconhecerem a conexão interna com a falta de base de valorização real e com a conjuntura do deficit. Por isso eles partiam do princípio de que o rebentar desta bolha levaria apenas a uma mossa passageira na conjuntura mundial, que em breve se ergueria de novo. Nas últimas décadas a classe política, por todo o mundo e independentemente dos partidos, passou-se de armas e bagagens para o neoliberalismo e seu postulado de desregulamentação, precisamente porque assim se podia aparentemente iludir os limites da valorização do capital, que já estavam à vista. A actual viragem, com os traços bizarros de uma mudança milagrosa de liberais hard core para capitalistas de Estado, deve ser antes de mais considerada como um acto de desespero. Tal como já a viragem neoliberal fora uma cega fuga em frente, por maioria de razão o é esta inversão. Isto não tem nada a ver com ingenuidade, nem com grande estratégia, mas com o beco sem saída em que estão as instituições capitalistas, que no entanto se apresentam às elites económicas e políticas como a única forma de socialidade possível.



Peer Steinbrück apresentou um chamado plano de 8 pontos para a remoção dos produtos tóxicos dos bancos. Como avalia estas propostas?

Este plano, assim designado com optimismo, é um insustentável programa de disparates, e como tal poucos dias depois já é lixo. Ele não passava de exigências, tão banais como baratas, de ?mais transparência? nos negócios bancários, reflexões completamente indefinidas sobre a re-regulação e um virar de casaca populista, no sentido da fúria popular contra ?os altos rendimentos dos gestores?, como mera manobra de diversão. O que Steinbrück referia apenas envergonhadamente parece agora ter-se tornado claro na cimeira do G-7: garantias estatais generalizadas, amplas estatizações de bancos e passagem à ?contabilidade criativa? (modificação das regras do balanço). Trata-se da mesma farsa que no caso da modificação ?criativa? das estatísticas do desemprego e do cálculo da inflação. Mas a massa dos créditos malparados não se pode escamotear tão facilmente como as estatísticas sociais.



O Estado, apesar de se mostrar avaro no rendimento mínimo para os beneficiários do [programa anti-social] Hartz-IV, tem agora de repente uma soma de milhares de milhões a mais par aguentar os bancos. Donde vem ela?

Não tem nada essa soma a mais. Só que não está disposto a recorrer a estes métodos de financiamento aventureiros para acudir à existência de seres humanos, ?supérfluos? segundo os critérios capitalistas, mas sim para a conservação do sistema financeiro. Estas somas nunca vistas (biliões e não milhares de milhões) têm de ser conseguidas ? esta a única possibilidade ? no mercado financeiro global, através de empréstimos adicionais, o que no entanto se deve ter tornado difícil nas novas condições. O Estado teria de pagar juros mais altos, o que faria subir o nível geral dos juros, contrariando a política de redução de juros dos bancos centrais, ou então teria de subir drasticamente os impostos. Qualquer das hipóteses mandaria de vez abaixo a conjuntura à beira da queda. A outra hipótese consiste em os bancos centrais transferirem simplesmente para o Estado dinheiro criado do nada, sem contra-garantias; e possivelmente também para os cambaleantes conglomerados empresariais, para adiar a crise económica mundial. Isso significaria portanto liquidar os limites institucionais à criação de dinheiro e recorrer directamente à impressão de notas, como na economia de guerra da Primeira Guerra Mundial. O que mais não seria que usar de novo, desenfreadamente e numa nova dimensão, o mesmo meio que agora é lamentado como a causa da crise financeira. O resultado seria a inflação galopante que agora já se faz notar num nível baixo. Se um café custar, digamos, 30 euros, um crescimento assim induzido reduzir-se-ia ao absurdo, enquanto simultaneamente seriam desvalorizadas todas as poupanças em dinheiro. As garantias estatais vendidas de momento como ?medidas geradoras de confiança? podem transformar-se rapidamente no seu contrário, se as modalidades de questionar o financiamento se concretizarem. Ironicamente o terror da financiabilidade, até aqui vigente na administração de crise anti-social, vira-se agora contra o próprio sistema capitalista.



Fica-se com a impressão que, depois de décadas em que os lucros obtidos na especulação foram parar aos bolsos privados, os prejuízos são agora socializados, e talvez mesmo, com os pacotes de ajuda estatal, de novo imensas somas de dinheiro lançadas nas goelas dos que causaram a crise e se abotoaram com os lucros (Paulsen)?

No capitalismo os lucros são sempre privatizados e as perdas socializadas na crise, isso é inerente ao sistema, não é nada de novo. E desde logo a especulação não é a causa da crise, mas sim a consequência da falta de possibilidades de valorização real, que finalmente se manifesta na crise. O ressentimento popular contra os tubarões da finança não tem nada a ver com crítica emancipatória, mas resulta da ilusória confiança atávica no capitalismo ?são?, que é precisamente o que provoca a crise. ?Respeitável? nesta sociedade é pura e simplesmente abotoar-se com os lucros; qualquer titular de pequena ou média empresa é um aproveitador dos lucros profundamente decente, para já não falar dos empresários dos pequenos estabelecimentos com salários de miséria. Este apropriar-se dos lucros não é sequer uma relação de vontade subjectiva, mas uma necessidade objectiva do sistema; os gestores são apenas funcionários deste. Quando o preconceito popular geral face à crise financeira denuncia como apropriadores de lucros apenas os banqueiros, de quem é de desconfiar, tem de ser ele próprio denunciado como mentalidade de solícito animal de trabalho, que a si mesmo se vê como apropriador de lucros ?normal? e ?sério?. De resto o apropriador de lucros ?da economia real?, aparentemente ?regulares?, da conjuntura de exportação e serviços baseada no deficit já viveu nos últimos anos precisamente do ?deficit spending? da economia das bolhas financeiras. Os amantes do capitalismo ?decente? deveriam verdadeiramente estar agradecidos pelo facto de a especulação lhes ter oferecido um tempo de vida suplementar, pois de outro modo a ?mãe de todas as crises? teria chegado muito mais cedo. Em todo caso esta crise assumiu tal dimensão que a própria socialização das perdas se torna precária. Se o Estado assume o comando, então os banqueiros tornam-se de facto seus empregados, e as somas imensas não são despejadas nas goelas de Ackermann e Cª, mas no buraco negro da administração da falência global.



Na sua opinião há algum político, a nível nacional ou mundial, que proponha medidas acertadas?

Agora é para eu dizer ?Obama?? Ele provavelmente vai ter de pagar as favas pela confusão nos EUA, e tem chance de uma carreira de bode expiatório ?negro?, pois a sua campanha de ?change?, bastante pobre de conteúdo e apenas mediaticamente eficaz, vai ter de se revelar como completamente vazia. Aqui já não há carisma que ajude. A chamada política é simplesmente a forma de administração do sistema e dos seres humanos, enquanto a outra face da relação de capital. Quem entra na política já bateu a bota, com a ?configuração? nos critérios sistémicos, na matrix fetichista da valorização do valor. É por isso que também a esquerda política chega sempre de novo ?a?o capitalismo. A política apenas pode administrar as gritantes contradições e tapar buracos para voltar a abri-los. O azar é que, sob determinadas circunstâncias, o ouvido da política no pulsar das sondagens não ouve nenhuma chance, a não ser a surda ameaça da exaltação populista de uma consciência de massas que procura vítimas, quando as condições de vida capitalistas são retiradas aos complacentes normaizinhos.



Diz-se hoje que a coligação SPD-Verdes teria no seu tempo colocado as bases para que a crise financeira atingisse a Alemanha. Há aqui algo de verdade? Se então o ministro das finanças Oskar Lafontaine tivesse podido aplicar a sua política com êxito estaria a Alemanha melhor?

Há uma continuidade sem ruptura na viragem neoliberal, desde a administração Kohl, passando pela verde vermelha sob Schröder, até à actual grande coligação de Merkel. Tons intermédios são aqui apenas espasmos; as modificações cosméticas, por causa das diferentes colorações ideológicas, não foram essenciais. Evidentemente que os verdes vermelhos fizeram a agulha para o desenvolvimento que haveria de levar à presente crise, por exemplo através das bonificações fiscais para a ?grande farra? da batalha das fusões e aquisições. Isso foi apenas o reverso do [programa anti-social] Hartz-IV. Os verdes vermelhos neste caso seguiram não apenas o mainstream neoliberal, mas também a dinâmica objectiva do processo de crise capitalista. Após o fim da prosperidade fordista e o desabar da regulação keynesiana no desenvolvimento inflacionista do começo dos anos 80, o crescimento posterior só podia ser simulado através da expansão do ?capital fictício?, o que foi executado pela desregulação neoliberal. O governo verde vermelho era um governo capitalista, que fazer? Como tal ele só pôde fazer jus, no quadro da globalização, às condições de valorização tornadas sem base. Lafontaine e os seus seguidores não são críticos do capitalismo, mas nostálgicos do keynesianismo nacional que há muito tempo deixou de funcionar. Como política de governo isso teria já então fracassado. A invocação da ?Alemanha modelo?, que se poderia desacoplar do capital mundial, é não apenas uma ilusão, mas na essência nacionalista e reaccionária. Tais entoações fazem-se agora ouvir também da parte de Merkel e de Steinbrück, que procedem com se o mal tivesse vindo dos EUA invadir a inocente e sólida Alemanha, mas que na realidade desde o princípio se envolveram fortemente, até mesmo com os ?ávidos? pequenos especuladores comuns, que agora mais do que nunca fazem o papel de enganados. O programa de Lafontaine só tem eficácia para as sondagens e ?para o voto?, na medida em que ele na prática nunca deverá tornar-se política de governo. Onde o Partido da Esquerda participa no governo do Land (Berlim) apoia as restrições sociais como ?coerções objectivas?. Por isso há entre eles, como antes entre os Verdes, uma fracção de realos que gostaria de conter Lafontaine, para conseguirem tornar-se capazes de governar. O que não é assim tão improvável, em caso de posterior agravamento da crise. Os realos poderiam cavalgar na onda do capitalismo de Estado ?pragmático?, trazido de volta mais que de repente, pois os realos rapidamente serão aceites junto do poder, se fornecerem a legitimação da co-gestão da crise como bons alunos.



A ATTAC é publicamente considerada como o Forum para a mais aguda crítica do capitalismo financeiro neoliberal. Que pensa disso, em termos analíticos e práticos?

A crítica da ATTAC não é aguda, mas obtusa, e foi desde sempre, à semelhança das ideias de Lafontaine, marcada pela nostalgia keynesiana. Uma crítica isolada do neoliberalismo não serve de nada, porque não analisa a conexão interna da viragem neoliberal com os limites da valorização real do capital, mas considera esta doutrina apenas como política económica ?errónea?, supostamente imposta através duma espécie de putsch. Se agora as elites capitalistas lançam pela borda fora o neoliberalismo, tão nervosamente como outrora se desfizeram do keynesianismo, isso só mostra que o capitalismo não coincide com um determinado modo de regulação. Por maioria de razão uma crítica isolada do capitalismo financeiro não serve para nada, porque põe de pernas para o ar a relação entre a economia real e a superstrutura financeira, e porque responsabiliza a especulação por uma crise que tem a sua origem precisamente na própria lógica da valorização. Também a ATTAC não queria mais nada que um ?bom? capitalismo dos postos de trabalho. Há muito que vem sendo criticado que esta espécie de ?crítica do capitalismo? é reaccionária e, consciente ou inconscientemente, querendo ou não querendo, contém um ?anti-semitismo estrutural?, porque não ataca os fundamentos do capitalismo, mas obedece apenas ao preconceito popular do ?capital rapinante?, que é responsabilizado por todos os males sociais e já desde há 200 anos é ligado aos judeus. A defesa da ATTAC contra esta acusação foi sempre, na melhor das hipóteses, titubeante e duvidosa. Por isso houve e há no círculo nada transparente da ATTAC simpatias pelo devorador de judeus Ahmadinejad, que é estilizado como luminosa figura ?anti-imperialista? e também declarou publicamente como causa da crise financeira uma ?ameaça judaica mundial?. Actualmente a ATTAC parece estar ocupada em sentir, em vez de imaginar, que fantasmas foram acordados pela crítica isolada da especulação. Quando a ATTAC agora, com a grande crise financeira, com o fim do neoliberalismo e com a passagem à re-regulação e à estatização dos bancos, vê amadurecer os seus sonhos de florescência, e espera, com o ministro do trabalho Scholz, o regresso do Estado social keynesiano, ela só pode vir a envergonhar-se desta opção a muito curto prazo. Na realidade, o capitalismo vai ser reduzido às suas reais condições de valorização. Em consequência, está à vista uma depressão global e não o regresso ao crescimento ?real? após os ?desvios?. O novo capitalismo de Estado vai mostrar uma face horrorosa a agravar dramaticamente a administração de crises repressiva. Talvez que mesmo [o programa anti-social] Hartz-IV venha a parecer em retrospectiva relativamente acolhedor. E depois? Terá a ATTAC de acabar por reivindicar o regresso da economia das bolhas financeiras, porque é incapaz de pôr em causa as condições de vida capitalistas enquanto tais? Ou uma pessoa desfaz-se no turbilhão das ideologias de massas que confirma os piores receios? Ou já só nos resta rezar, uma vez que ainda assim nos tornámos Papa?



O que se segue a esta crise aniquiladora?

Falar de uma crise ?aniquiladora? coloca numa certa inadequação a pergunta sobre o que vem ?depois?. A crença congénita da esquerda na capacidade de regeneração do capitalismo corresponde tão-somente aos comentários na imprensa económica, que também falam de ?após o capitalismo?, enquanto a verdadeira dimensão da crise apenas começa a revelar-se. Naturalmente que vai haver reacções técnicas das bolsas em movimento ascendente, talvez alimentadas pelas esperanças de curto prazo na eficácia do pacote de medidas estatais. Mas a dinâmica do processo de crise já não vai voltar ao nível anterior, se não surgirem novos potenciais de valorização real, que não estão à vista em lado nenhum. Cada estabilização temporária só pode preparar o próximo surto de crise tanto mais violento. Seria necessário um contra-movimento social autónomo, para lá do espaço nacional, que não permitisse aos administradores de crises contrariarem os interesses vitais, e que negasse qualquer exclusão social, sexual, étnica ou ?rácica?. Movimento que, no entanto, está tão-pouco à vista como os novos potenciais de valorização. Portanto, o que se pode dizer é que a desintegração social vai prosseguir, numa dimensão até aqui nunca vista, também nos centros do capitalismo, incluindo na ?inocente? RFA.

Original INTERVIEW MIT DER INTERNET-ZEITSCHRIFT ?TELEPOLIS? em www.exit-online.org.

(Publicado na revista online TELEPOLIS (Hannover), 1ª parte em 14.10.2008 com o título A MÃE DE TODAS AS CRISES

e 2ª parte. em 15.10.2008 com o título SOCIALIZAÇÃO DAS PERDAS , LAFONTAINE E ATTAC

“Temos que nos preparar para acontecimentos convulsivos”

ENTREVISTA COM CHRISTIAN CASTILLO

Publicamos abaixo entrevista concedida por Christian Castillo, dirigente nacional do Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS), organização irmã da LER-QI na Argentina, onde ele apresenta primeiras considerações sobre as perspectivas políticas a partir da crise capitalista internacional.

LVO: Quais perspectivas você acha que devemos ter a partir da crise internacional?

A crise mundial do capitalismo que está em pleno desenvolvimento terá conseqüências profundas que marcarão os próximos anos. Estamos presenciando um giro de características históricas. Recordemos que quando comparamos com a crise dos anos 1930, estamos falando de um processo longo, que começou com o crack de 1929, a partir do qual ocorre uma queda muito forte da produção até os anos de 1932 e 1933, e que os capitalistas “resolvem” rumando para a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha com o nazismo coloca em marcha uma economia de guerra e militarização e absorve os altos níveis de desemprego. Os EUA implantam o New Deal, mas também chegam ao fim da depressão econômica com 25% de desemprego. Somente quando transforma a economia norte-americana em economia de guerra (War Deal) os índices melhoram. Desde já, nem tudo será igual, não são os mesmos os pólos de poder mundial, mas estamos falando de um período de uma magnitude desse tipo. Quando falamos que pode haver uma depressão nos EUA significa que o desemprego pode saltar dos 6% atuais a 13%, 15% ou mais. Isto vai provocar conseqüências na luta de classes e mudará radicalmente o estado de ânimo das massas por conta da crise no principal país capitalista do mundo.

Queremos dizer que a crise afetará a todos os países, ainda que os ritmos e a profundidade da crise não se manifestem homogeneamente. Isto já é evidente na Europa, que já aparece como um elo débil da economia mundial. Até a “grande potência” China exporta 40% de toda sua produção aos EUA, o que faz com que um dos países que despontou como pulmão, como motor da economia mundial dos últimos tempos, vá sentir sem dúvida alguma o impacto. As moradias em Xangai já haviam se desvalorizado em 30%, onde havia também uma espécie de bolha imobiliária; na China possivelmente as tensões sociais se agravem.

LVO: É senso comum dizer que o capitalismo se regenerará com maiores regulações do Estado ao capital financeiro.. .

Os Estados estiveram e estão a serviço de defender os lucros dos capitalistas e não a serviço de satisfazer as necessidades sociais. Esta ficção de que o Estado representa o bem comum na sociedade capitalista também vem abaixo. Todos, não só os EUA, mas também os países da Europa, tentam resgatar os grandes banqueiros e monopólios, quase para confirmar ao pé da letra a definição de Marx de que os Estados são “uma junta que administra os negócios comuns de toda a burguesia”. Paulson, o arquiteto da mega-salvação de 700 bilhões de dólares, foi presidente do Goldman Sachs. McCain e Obama são da elite tradicional, obviamente com matizes, mas representam a continuidade da mesma oligarquia financeira; um com um discurso de conservadorismo moral no caso dos republicanos, e outro com um discurso mais de centro-esquerda ou “liberal”, como é chamado na linguagem política norte-americana. Outra coisa é que muitos dos votantes de Obama tenham ilusões em que este traga uma mudança.

As administrações anteriores dos EUA estavam todas ligadas a estes cinco grandes bancos de investimento que agora desapareceram totalmente do mapa. São as instituições que fazem a pontuação do risco país da Argentina, ou as qualificações do investment grade do Brasil, que agora, ainda por cima, os castigam com a fuga de capitais. As campanhas dos dois, republicanos e democratas, foram financiadas por eles. O bipartidarismo norte-americano representa um interesse basicamente comum. O principal diretor do Lehmann Brothers foi indenizado com 350 milhões de dólares graças aos democratas e aos republicanos. Davam a ele a saída: quebras generalizadas e o cara sai com as maletas cheias. Estes “pára-quedas de ouro” foram o motivo, por conta do repúdio popular que gerou, de uma das grandes discussões do resgate que foi votado pelo Congresso norte-americano. É tudo um grande desmascaramento. É neste sentido que, ideologicamente, esta crise pode ter um impacto similar, mas em sentido contrário, ao da queda do Muro de Berlim para nós que levantamos a luta pelo socialismo, quando Fukuyama e tantos outros chegaram a dizer que era o fim da história e que não havia alternativa ao capitalismo. Hoje ficará colocada a pergunta na mente de milhões: por que temos que continuar vivendo em um sistema que provoca crises recorrentes e nos manda cada vez mais à bancarrota e à miséria?

L: O “fim do capitalismo”...

O capitalismo não se acaba sozinho, não morre de morte natural, é preciso derrotá-lo. Mas crises desta envergadura alteram as condições de estabilização do sistema, e quando isso ocorre se abrem cenários de luta de classes e de lutas entre Estados muito agudas, incluindo, com certeza, as guerras. A crise dos anos 1930 abriu caminho a revoluções como a guerra civil espanhola, ou às grandes ocupações de fábrica na França em 1936. E levou também a fenômenos aberrantes como o nazismo: Hitler é um filho direto da crise dos anos 1930, e também suas conseqüências na Alemanha o são.

Agora, alguns grandes capitalistas continuam fazendo negócios, não se trata do fato de que todos perdem. Isso está acontecendo com alguns banqueiros que dizem: “o momento de comprar é agora”, ou seja, das crises se deriva uma maior concentração e centralização de capital; se o capitalismo não é derrotado, ressurge com maior agressividade. Surgirão também setores mais à direita, mais fascistas. Não nos esqueçamos que a sociedade dos EUA é muito polarizada, na qual existem grupos muito reacionários. No caso da Europa, Sarkozy na França ou Merkel na Alemanha chegaram ao governo com o dever de avançar com o desmantelamento das conquistas sociais que puderam se manter. Justamente Sarkozy subiu ao poder com esse discurso, mas também foi atingido por uma forte crise, na população cresce a desconfiança nos partidos tradicionais, uma mudança que ocorre porque vacila a idéia de que o capitalismo continuaria crescendo. “Trabalhar mais para ganhar mais” era o discurso de Sarkozy contra a conquista da semana de trabalho de 35 horas. Ou seja, haverá tensões sociais muito fortes que vão tensionar à esquerda e à direita a partir desta crise.

Insisto, se novos tempos vierem, que se delinearão a partir de como atuará a classe dominante para superar esta crise e das respostas das massas, será um período em que vão se mostrar diante de milhões em todo o mundo a irracionalidade deste sistema social. Já nos EUA temos centenas de milhares de habitações vazias e gente vivendo nos parques, o que se chama de “cidades barracas”, acampando nas periferias das cidades, às vezes em traillers ou em automóveis. E vamos ver outras irracionalidades como fábricas que permanecerão fechadas com milhares de desempregados. Como o que nós argentinos vivemos em 2001 e 2002 com a incongruência de ser um país que produz alimentos para mais de 400 milhões de pessoas, e que vinham barcos da Espanha com cargas para acalmar a fome da população. Veremos a irracionalidade de todo um sistema social que alguns querem encobrir, e nós que, pelo contrário, acreditamos que precisamos derrubá-lo e dar lugar a outro tipo de organização social baseada na propriedade coletiva dos meios de produção, orientada a satisfazer as necessidades sociais, não para alimentar os lucros dos monopólios que controlam a economia mundial.


LVO: Como dizem os cartazes do PTS: “O capitalismo não dá mais, que governem os trabalhadores”...

Lançamos esta campanha de agitação política diante de uma guinada estratégica do mapa político internacional. Insisto, o impacto ideológico vai ser muito forte e nós, que sempre dissemos que é necessária a luta revolucionária por um sistema socialista e que o capitalismo é um sistema que está sobrevivendo para além de suas possibilidades, vamos encontrar novos ouvintes e novas forças militantes. Milhões vão iniciar um caminho de experiência com a crise, pois tentarão descarregá-la sobre as costas do povo, contra a qual haverá resistência e que apresentará, como em toda crise, oportunidades revolucionárias. Estas crises provocam fenômenos novos, impensados até então. Nos EUA nos anos 1930 houve um movimento de desempregados de enorme envergadura com um nível de organização e ação maior do que vimos na Argentina. Ocorreram ações de sindicatos radicalizados, houve o surgimento de uma nova central sindical como a CIO onde se organizavam os trabalhadores negros, porque antes os sindicatos eram tão racistas que não deixavam se organizarem; e foi um período de grandes greves industriais.

Nos EUA em 1999 já se deu um sinal: o novo movimento antiglobalização em Seattle, e as marchas que tornaram visível um nível de mal-estar com o que havia sido a onda globalizante dos anos 1990. Ou o grande 1º de maio de dois anos atrás, de onde saíram todos os imigrantes ilegais a uma paralização contra a precarização e pela legalização. Na Europa é onde há mais tradição de luta do movimento de massas. Os golpes do neoliberalismo também foram sofridos na Europa com intensidade, mas houve mais resistência desde a greve geral dos estatais em 1995 na França até as rebeliões da juventude estudantil e dos subúrbios. Há dois dias ocorreu na Bélgica uma greve geral muito importante pelo aumento dos salários diante da carestia de vida; um país que não se caracteriza pelas paralizações gerais. Em nosso continente temos o caso do México, um país diretamente afetado por sua integração ao mercado norte-americano mediante o TLC, onde estamos vendo novamente rebeliões de professores em vários estados, como em Morelos, com métodos radicalizados que lembram o início da luta em Oaxaca há dois anos atrás.

Ainda estamos em um primeiro momento onde pesa o abalo diante do que fazer frente ao que se vai perder, de incertezas sobre como a crise vai afetar. Mas haverá um segundo momento onde se colocará a necessidade de organizar-se e de lutar. Esse segundo momento vai marcar os cenários possíveis da crise que se iniciou. Não nos esqueçamos que na Argentina a crise capitalista que vivemos há 7 anos deu lugar ao surgimento de atores sociais completamente novos, como o movimento organizado dos desempregados, o fenômeno operário profundo das gestões operárias de fábrica e as assembléias populares em setores das classes médias. Vamos assistir a novos movimentos e expressões da luta de classes porque o desemprego será multiplicado, a falta de habitações e a fome vão ser coisas generalizadas. O que não se pode pensar é que isto é algo que vai passar rápido. Há um dado muito interessante: das 10 recuperações mais fortes da Bolsa na história de Wall Street, 9 ocorreram durante a Grande Depressão dos anos 1930. Ou seja, que não temos que nos perder nos movimentos conjunturais, ainda que os estudemos muito cuidadosamente. É preciso ter a perspectiva de uma situação de longo fôlego e acontecimentos convulsivos. Nós revolucionários temos que ter a mente aberta e nos prepararmos para novos fenômenos políticos e da luta de classes. E preparar-se significa dar passos na construção de fortes partidos revolucionários, socialistas e internacionalistas.

Traduzido por Luciana Machado

Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis

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