"Construir moradias é produzir cidades. É essencial discutir os impactos dos empreendimentos imobiliários nas condições de vida, na instituição ou destituição de direitos sociais, no ordenamento territorial e no funcionamento das cidades."
Raquel Rolnik e Kazuo Nakano - "As armadilhas do pacote habitacional" - Le Monde Diplomatique Brasil, março 2009
A grave crise habitacional de nossas cidades tem como principal causa o bloqueio imposto ao acesso à terra urbanizada para a população de baixa renda.
O direito à cidade é negado a uma grande parcela da população, que está condenada a ocupar as "sobras" da cidade, os espaços precários e insalubres localizados nas beiras dos rios ou nas encostas dos morros. O modelo de desenvolvimento urbano que estrutura nossas cidades expulsa a população de baixa renda das áreas mais centrais, em direção à periferia, onde a terra é mais barata exatamente porque não reúne os requisitos mínimos para assegurar uma vida digna.
Mas, o direito à moradia pressupõe o acesso aos bens e serviços proporcionados pela cidade, a possibilidade de morar em área urbanizada, dotada de infra-estrutura, bem localizada, com acesso aos serviços de saúde, educação, aos bens culturais e às oportunidades de trabalho. Em resumo, o direito à moradia digna é indissociável do direito à cidade, e não pode, portanto, ser reduzido à habitação, entendida como quatro paredes e um teto.
Isso significa que uma política habitacional deve, necessariamente, prever a definição de áreas adequadas para a implantação de moradias populares. De outra forma, o resultado previsível é a reprodução do modelo que condena os trabalhadores a ocuparem a periferia, tal como na experiência vivida com o BNH.
Um aspecto importante para a compreensão do atual modelo de desenvolvimento urbano é o próprio conceito de déficit habitacional, que é traduzido pela necessidade de construção de novas unidades, por reposição ou incremento de estoque, e está estimado em 7,2 milhões de domicílios.
Mas, enquanto para as famílias de baixa renda há carência de habitações, no mercado formal há mais imóveis do que gente para ocupá-los, como demonstra o número de casas e apartamentos vazios, da ordem de 6,7 milhões de unidades, muito próximo ao déficit habitacional. Na cidade do Rio de Janeiro, o déficit habitacional é da ordem de 149 mil domicílios enquanto o número de domicílios vazios corresponde a 223 mil!
De onde se conclui que o conceito de déficit habitacional não significa que faltem moradias, mas sim que uma grande parcela da população não tem condições de ter acesso à moradia pelas regras do mercado, o que aumenta ainda mais a importância de uma política de habitação consistente que garanta o direito à moradia digna.
A avaliação sobre o pacote habitacional do governo federal deve levar em conta os dois objetivos anunciados: uma política social de geração de emprego e renda, por meio do investimento na construção civil, e uma política habitacional que contribua para a redução do déficit habitacional.
O primeiro objetivo está inserido em um conjunto mais amplo de iniciativas, que buscam dar uma resposta à repercussão no país da forte crise que se abateu sobre a economia mundial. A escolha do setor de construção civil, no caso, deve-se à sua importância relativa no conjunto da economia e à sua capacidade de gerar empregos.
O segundo objetivo vem cercado de números bastante expressivos: anuncia-se um investimento da ordem de R$ 34 bilhões na construção de 1 milhão de novas unidades, atendendo a famílias com renda de até 10 salários mínimos, sendo que 400 mil unidades são destinadas para famílias com renda de até 3 salários mínimos. A distribuição pelos estados respeita a composição do déficit habitacional. O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, será beneficiado com a construção de 75 mil novas moradias.
Há um esforço para demonstrar que esses dois objetivos estão articulados, ou seja, que os recursos utilizados para apoiar a construção civil resultarão em benefícios para a sociedade, na medida em que se propõe a enfrentar um grave problema social que afeta uma grande parcela da população. Entretanto, uma análise mais atenta sobre como o programa "Minha Casa, Minha Vida" insere-se na política de habitação e na política urbana revela graves problemas.
Nos últimos anos foram registrados importantes avanços institucionais e políticos, tendo como marco inaugural a Constituição Federal, quando definiu a função social da propriedade como princípio estruturador da política de desenvolvimento e expansão urbana.
O Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, viabilizou a aplicação de uma série de instrumentos de combate à especulação imobiliária, destacando-se aqueles que penalizam diretamente os proprietários do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que não promoverem seu adequado aproveitamento. Esses instrumentos ampliam a oferta e reduzem o preço da terra urbana, abrindo a possibilidade de o poder público atuar para liberar terrenos e prédios retidos pelos especuladores, destinando-os para o atendimento da demanda por moradia.
Destacam-se, também, os instrumentos de regularização fundiária, que permitem tanto reconhecer os direitos dos moradores das favelas e dos prédios ocupados, garantindo a segurança da posse e a urbanização e/ou melhoria dessas áreas e prédios, como destinar novas áreas, inseridas na malha urbana, para a implantação de programas de moradia.
Outro avanço importante foi a instituição do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS (Lei 11.124/2005), que funcionaria como uma espécie de "SUS" da área da habitação, contando com um Fundo (FNHIS) e um Conselho Gestor, com ramificações por todos os estados e municípios, e cujo propósito é promover a integração dos programas de habitação voltados para a população de baixa renda. A recente regulamentação do direito à assistência técnica pública e gratuita à moradia popular (Lei 11.888/2008) ampliou, ainda mais, o campo de possibilidades da política habitacional.
Entretanto, ao confrontarmos a concepção subjacente ao pacote habitacional com os elementos centrais que devem constituir uma política habitacional comprometida com a superação do modelo que está na origem do processo de segregação sócio-territorial presente nas nossas cidades, constataremos que as convergências são poucas ou praticamente inexistentes.
O pacote tem como foco a construção de unidades novas, em caráter exclusivo. Não há qualquer previsão para o aproveitamento de imóveis vazios e subutilizados; a reabilitação de imóveis; a adoção de novas modalidades de oferta de serviços habitacionais, como o aluguel subsidiado e a locação social; o incentivo à criação de cooperativas que promovam a produção social de moradias; a assistência técnica articulada com recursos para a autoconstrução. Não há, sequer, a exigência de que os empreendimentos sejam implantados em terrenos localizados em áreas urbanas consolidadas, e conforme previsão contida nos Planos Diretores.
O pacote ignora o SNHIS e sua rede de Conselhos implantada nos estados e nos municípios, bem como o diagnóstico e as recomendações do PLANHAB - Plano Nacional de Habitação. O princípio do planejamento, da integração das ações na área habitacional, foi absolutamente esquecido. Os recursos foram alocados em outro Fundo (FAR), sob outro sistema de gestão onde somente os Ministérios tem assento. O Conselho Nacional das Cidades foi "informado" sobre o pacote no dia de seu lançamento e, agora, terá o "direito" de ser informado sobre sua implantação.
O pacote tem nas construtoras seu principal agente, a quem cabe a apresentação dos projetos à CAIXA, com previsão de que sejam aprovados em até 30 dias (aliás, "agilidade" e "eficiência" são marcas valorizadas). Isso significa que os empreendimentos serão decididos pelas construtoras juntamente com a CAIXA, sem qualquer participação da sociedade.
Apesar de pontos positivos, como o volume significativo de recursos, com fortes subsídios para a população de baixa renda, e a inserção do tema da habitação na agenda política, não foi rompido o paradigma básico da produção habitacional para a população de baixa renda. Pelo contrário, o pacote habitacional foi estruturado segundo a mesma lógica que se pretendia ver superada a partir das lutas empreendidas pelo movimento da reforma urbana, das quais, inclusive, deriva todo o avanço institucional e político que foi descrito.
Alguns de seus efeitos previsíveis são: aumento especulativo dos preços dos terrenos, com apropriação de boa parte dos recursos pelos proprietários de terras; maior dificuldade no acesso à moradia para as famílias não beneficiadas pelo programa; grandes lucros para as construtoras; e produção de novas periferias, desintegradas e desarticuladas do espaço urbano.
Conclui-se que não se pode, realmente, "confundir política habitacional com política de empregos na indústria da construção", pois se com relação a essa última ainda é possível identificar benefícios, com relação à política habitacional as conseqüências tendem a ser desastrosas.
Mas, nem por isso, o pacote habitacional será um fracasso do ponto de vista do governo, que procura explorar o forte simbolismo do "sonho da casa própria" e, como os recursos são expressivos e, de alguma forma, serão obtidos resultados que chegarão à população de baixa renda, cria-se, na população beneficiada, o sentimento de que "alguém" está olhando por ela. E é inegável que o governo tem sabido capitalizar esse sentimento, para desespero da oposição conservadora, mas, também, para desalento daqueles que se mantém na perspectiva da luta por uma cidade e uma sociedade mais justa e democrática.
Marcos de Faria Asevedo é diretor do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas RJ (Sarj) e representante do Sarj no Conselho Gestor do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social do Rio de Janeiro (CGFMHIS).