Para o ex-deputado federal Sérgio Miranda, debate sobre a reforma proposta pelo governo Lula ignora a questão da justiça tributária. Segundo ele, as mudanças têm conteúdo neoliberal e vão ampliar as desigualdades regionais e sociais
Contrário à proposta de reforma tributária apresentada pelo governo, o ex-deputado federal mineiro afirma que uma das questões mais importantes não está sendo debatida: a justiça tributária. Para ele, esse remendo na reforma faz parte de um conteúdo neoliberal, que trará graves conseqüências para o país, acentuando, inclusive, as desigualdades sociais e regionais.
Ex-relator da reforma tributária em 2006, Sérgio Miranda defende que as mudanças deveriam propor a eliminação de “tributos sobre a cesta básica” e aumentar a regulamentação de impostos sobre grandes fortunas. A retirada de determinados subsídios da Constituição, como os concedidos aos “produtores rurais que, até hoje, não pagam imposto de renda e nem previdência social”, também seria uma medida capaz de colaborar para a construção de reforma tributária mais igualitária.
Na entrevista a seguir, Miranda comenta alguns aspectos da reforma tributária como a unificação do ICMS, a perda de prerrogativas dos estados na participação da política econômica e a subestimação da fiscalização do trabalho no país.
Sérgio Miranda foi deputado federal entre 1993 e 2007. Durante mais de 40 anos foi filiado ao PCdoB do qual se desfiliou em 2005. Atualmente, é presidente municipal do PDT de Belo Horizonte.
Como o senhor percebe as mudanças sugeridas pelo governo para a reforma tributária? Essa proposta apresenta algum equivoco?
Sérgio Miranda – Esse projeto de reforma proposto pelo governo traz a simplificação tributária e abre possibilidades para se evitar a cumulatividade de alguns impostos. No entanto, a proposta esquece e subestima completamente o problema da justiça tributária, que é o aspecto mais grave do sistema tributário brasileiro. Trata-se, nesse sentido, de uma reforma de conteúdo neoliberal, e que apresenta algumas conseqüências muito graves. Para explicar minha posição, destaco três pontos dessa proposta.
O primeiro diz respeito à unificação do ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação).
Há muito tempo, os estados vêm perdendo o poder de fazer política econômica, já que as dívidas são controladas, ao mesmo tempo em que a União proíbe a emissão de títulos pelos entes subnacionais. Com a votação da legislação nacional sobre o ICMS, sugerida pelo Senado, eles perdem totalmente a sua competência tributária.
O segundo aspecto da proposta do governo, o qual considero, junto com o terceiro, o mais grave, refere-se ao fim do orçamento da seguridade social. Durante o processo constituinte de 1988, o ponto alto, fruto do ambiente político da época, estava marcado pelos anseios a liberdade democrática e justiça social. Desse modo, criou-se, na Constituição de 88, o sistema de seguridade social. Esse deveria garantir as políticas que envolvem a área da saúde, assistência social, previdência, incluindo aí o seguro desemprego e o abono salarial. Entretanto, essas políticas só teriam conseqüência se tivessem um financiamento próprio. Por isso, esse orçamento passou a ser financiado por parte do orçamento fiscal e por contribuições sociais. Essas questões devem ser levadas em consideração quando se discute previdência. Portanto, digo que não se pode olhar apenas a contribuição sobre a folha dos patrões e dos empregadores. Deve-se olhar, sim, as outras contribuições que formam o orçamento da seguridade social.
Entretanto, o ajuste fiscal neoliberal, que assistimos desde a década de 1990, distorceu o orçamento da seguridade social. Em todos esses anos, nunca foi feita a separação física dos orçamentos. Sendo assim, os orçamentos fiscal e da seguridade social sempre foram tratados em conjunto. Essa técnica serviu, até agora, para concentrar os tributos nas mãos da União e para cumprir os compromissos fiscais com a política econômica. Ora, se acabar o orçamento da seguridade social e se diminuir a arrecadação sobre a folha, isso vai gerar um déficit na previdência, que será usado como uma argüição da necessidade de uma nova reforma.
O último ponto diz respeito ao problema da injustiça tributária. Discute-se muito a carga fiscal no Brasil. Dizem que ela é alta, mas esse não é o problema central. A grande questão é que a carga tributária é injusta. Predominam tributos sobre o consumo de forma indireta, enquanto os tributos sobre a renda e a propriedade são bastante subestimados na nossa carga tributária, ao contrário do que existe nos países desenvolvidos. Aqui, 60% do total dos tributos são impostos sobre o consumo. O desconto dos chamados juros sobre o capital próprio, a não-tributação dos lucros e dividendos na fonte mostram como alguns setores são tremendamente beneficiados por isenções tributárias. O agronegócio, por exemplo, não paga previdência, e o exportador tem isenção de ICMS e de outros tipos de tributos.
E como o senhor avalia a proposta do governo, em que os exportadores não internalizem mais os dólares recebidos?
Isso é uma contradição evidente. O Brasil tinha uma política de favorecimento tributário para os exportadores porque o resultado da exportação ficava no Banco Central, ou seja, eram os dólares que o país necessitava para cumprir seus compromissos externos. Ora, se os dólares obtidos com a venda de minérios da Vale, com a produção dos sojicultores, por exemplo, não voltam mais para o Brasil, por que manter enormes concessões fiscais para os exportadores? Se os dólares poderão ficar no exterior, o Brasil não se beneficia desse favorecimento que deu aos exportadores. O quadro exposto revela um problema no Congresso que permite o acontecimento de coisas como essa.
Alguns especialistas dizem que a criação do IVA federal (unificação dos impostos), o qual juntaria o PIS, PASEP, COFINS e Cide (imposto sobre combustíveis), não é a reforma ideal, mas a possível no momento. O senhor concorda?
Se quiséssemos manter o espírito da Constituição de 88, poderíamos reformular, acabar com a cumulatividade da COFINS e do PIS, mas mantendo-os como contribuições sociais. Se acabarmos com o orçamento da seguridade social, e, mesmo que os recursos venham como transferência do orçamento fiscal, vão ocorrer problemas.
Há um consenso entre aqueles que discutem a previdência social. Todos concordam com a idéia de que não pode ser cobrada apenas a contribuição patronal sobre a folha, porque acaba oferecendo um privilégio para aquelas empresas com um grande faturamento, emprega poucas pessoas e onera em demasia outras com uma mão-de-obra intensiva. Então, havia um consenso de que nós procuraríamos combinar mantendo sempre uma cobrança sobre a folha, mas diminuindo essa cobrança e substituindo por outros tributos. Mas, quando se prevê no projeto uma desoneração da folha, não há uma substituição clara de como isso será suprido por outros recursos.
O governo argumenta que o valor arrecadado através do IVA federal será transferido para o orçamento da seguridade. Como o senhor avalia essa afirmação?
Vejo isso como um problema, pois ocorrerá uma transferência de capital, o que significa que a seguridade social não terá recursos próprios. Se a proposta fosse acabar com a cumulatividade da COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e a duplicidade da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), poderia se fazer reformulações nesses tributos, mas mantendo-os como próprios da seguridade social. Por isso, acredito que a reforma tributária do Lula atinge o coração do sistema social preconizado pela Constituição de 88, ao por fim ao orçamento da seguridade social.
Outra proposta da reforma é acabar com a briga dos estados. A sugestão agora é que o estado que consome o produto pague o IVA. Quem de fato deveria pagar os impostos e quem deveria concentrar essa renda, para que houvesse maior competitividade no mercado interno?
Esse é problema complexo e também não tem uma resposta simples. Por que surge guerra fiscal? Porque há uma tendência natural de concentração da produção nos estados mais fortes. Um empresário, para transferir sua produção para um estado mais pobre, busca algum tipo de compensação. Então, se instala uma guerra fiscal, na qual os empresários se aproveitam dessa disputa para obter enormes benefícios. Esse é o problema grave. Mas, quando se discute o problema da desigualdade no Brasil, se subestima um debate sobre a desigualdade regional, não apenas entre as várias regiões do país, mas, às vezes, dentro do próprio estado.
O que vem sendo feito no Brasil é a transformação paulatina de um estado federativo em um estado unitário, concentrado na União, e a perda de prerrogativas por parte dos entes sub-nacionais. Isso é uma tendência muito forte recomendada pelo Consenso de Washington, pelas regras do FMI, de impedir que os estados façam política econômica. Então, essa proposta que surge agora é fecho de uma série de medidas já anteriormente adotadas para limitar a capacidade de autonomia dos estados e municípios.
Como devemos tratar esse problema?
A discussão do federalismo fiscal no Brasil é um debate mais abrangente, para o qual não tenho uma solução. No entanto, qualquer pessoa de bom senso sabe que nisso reside um dos aspectos da crise nacional: as diferenças regionais. Se a União não permite que os estados possam fazer concessões fiscais para atrair investimentos, como eles vão se desenvolver? O governo está respondendo a tal questão por meio da criação desses pontos. Essa reforma tributária, de certa maneira, joga tudo para depois. Mais tarde, serão definidas as leis complementares. Assim, procura-se garantir as mudanças constitucionais que são as mais difíceis de serem votadas, e o resto vai ser feito por lei complementar ou ordinária.
Uma das principais propostas da reforma tributária previa a destituição do imposto sobre a folha de pagamento dos trabalhadores. Segundo o governo, essa proposta possibilitaria o aumento de empregos. Entretanto, os sindicatos, em reunião com o presidente pediram a derrubada desse artigo. Qual é a sua avaliação sobre o caso?
A discussão sobre crescimento do emprego vem do aumento da demanda e não do custo da mão-de-obra. Se existe demanda na sociedade, o empresário contrata, compra matéria-prima e produz. Mesmo que a mão-de-obra seja de custo zero, se não existir demanda, as empresas não vão produzir.
O problema é que o país ficou garroteado durante anos numa política econômica de baixo crescimento. Tínhamos um PIB potencial. Quando ele crescia acima desse índice, sofria a intervenção do Banco Central, que aumentava a taxa de juros. A desoneração da folha como está sendo proposta, sem uma vinculação explícita à previdência, deve ser encarada como um golpe futuro em relação ao regime previdenciário.
Há muitos trabalhadores informais no Brasil, e, certamente, uma das causas se deve ao altíssimo valor tributário cobrado das pequenas empresas. Com a reforma tributária, que questões devem ser levadas em consideração nesses casos, para dar oportunidade aos pequenos empreendedores, a fim de que eles possam atuar de acordo com a lei?
Essa é uma questão complexa. O sistema trabalhista brasileiro foi desmontado nesses anos de neoliberalismo, no que diz respeito às múltiplas jornadas e aos contratos de trabalho. Isso contribuiu para o surgimento dos falsos estágios e das falsas cooperativas. Hoje, os trabalhadores ainda são submetidos a um enorme arrocho salarial. Não existe correção de salários pela inflação, o que faz com que eles fiquem dependentes do crescimento da produção, do PIB.
Não é tirando os direitos que se aumenta a formalização. Aumenta-se a formalização buscando melhoras tributárias para as pequenas empresas e dando algum tipo de prêmio àqueles que formalizam empregos. Há, ainda, uma subestimação da fiscalização do trabalho no país. Hoje, compensa muito mais manter um trabalhador sem o registro, porque as penalidades são ínfimas. O dinheiro que o empregador não paga de tributos é muito mais relevante do que a multa de descumprimento da legislação.
Com a tributação atual, uma pessoa com renda elevada e outra de baixa renda pagam o mesmo imposto. Quais são os pontos centrais numa reforma tributária, na perspectiva de uma maior eqüidade social e de renda que o senhor considera inegociáveis para a construção de uma reforma tributária justa?
Uma reforma progressista, por exemplo, deveria eliminar os tributos sobre a cesta básica e aumentar uma tributação sobre renda (juros e lucros) e propriedades. Se observarmos parte dos salários na distribuição funcional da renda brasileira, ela vem caindo. Assim, tem aumentado a parte dos juros que representam a média de quase 30% da renda nacional bruta e os lucros e dividendos.
Aumentar uma tabela de imposto de renda para quem recebe salário é penalizar a classe média e proteger os muito ricos. Seria necessário, nesse caso, um debate sobre a concepção do sistema tributário, principalmente sobre o consumo, que atinge mais de 60% do total dos impostos. Regulamentar o imposto sobre grandes fortunas, retirar da Constituição determinados subsídios, como os concedidos aos produtores rurais que, até hoje, não pagam imposto de renda e nem previdência social, também seriam boas alternativas para começar a construir uma reforma tributária mais igualitária.
Mas será possível propor essa reforma, garantindo o acesso à inclusão social como está previsto na Constituição de 88, tendo em vista a lógica econômica comandada pelo mercado?
Não. Seguindo a lógica do governo e do mercado, não há garantias sociais. A Constituição de 88 diz que não existe política social sem garantia de financiamento. Não adianta ter as melhores intenções e fazer as declarações mais caridosas sem ter a garantia de financiamento. Se quisermos avançar socialmente no Brasil, precisamos nos posicionar claramente frente a essa reforma tributária.
A proposta da reforma tributária é mais um fator que demonstra a crise da esquerda? Ela tende a ser pragmática e se orientar pelo poder?
Com certeza. Um agrupamento de esquerda não pode apresentar um projeto como esses. O que diferencia a esquerda da direita é, principalmente, a luta pela igualdade social. Essa eqüidade não se materializa em realizar alguns problemas sociais, cujo valor é mínimo em relação ao total do orçamento. A igualdade se materializa no enfrentamento com os privilégios dos ricos, dos poderosos. No entanto, o governo atual se omite em relação ao problema, o que demonstra um dos elementos da crise da esquerda. Um partido que se apresenta como esquerda não pode ser omisso em relação a questões tão importantes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário