Luta de classes e crise do imperialismo. Apontamentos sobre o ajuste da educação e do ensino no Brasil. O decreto do REUNI.
Marco Antonio V. dos Santos
1. O processo de regressão a uma situação colonial de novo tipo [1 ] expressa uma nova configuração da formação econômico-social brasileira para se ajustar ao processo de transformações da economia mundial que busca contrarestar sua crise. Portanto, determina também nos aparelhos ideológicos de Estado, principalmente no aparelho escolar, uma nova conformação de acordo com as atuais "necessidades" da conjuntura da formação social brasileira.
2. A partir dos anos 80 o Banco Mundial, substituindo a USAID [2], vem assumindo o papel de monitorar estes processos de ajustes estruturais nos países dominados, principalmente os ajustes/adequaçõ es na "área social", dentre eles o do aparelho escolar. Ajustes que resultam de processos objetivos e expressão de interesses do imperialismo, porém, também de setores da classe dominante local [3 ]. É importante ver como as propostas da burguesia industrial através da Confederação Nacional da Indústria coincidem com as propostas do imperialismo implementadas sob o cabresto do Banco Mundial ( ver anexo);
3. Para ocupar seu novo papel, o Banco Mundial elaborou um discurso de caráter "humanitário" que corresponde às noções ideológicas de "justiça social" das classes dominadas dos países dominados, assumindo o combate à "pobreza" [4 ], noção ideológica central no discurso (ideológico) de várias instituições dos Aparelhos de Estado: as diversas igrejas, ongs, organizações políticas revisionistas, reformistas, populistas, etc.
4. A atuação do Banco Mundial vai principalmente na direção de:
a) monitorar o ajuste estrutural dos países dominados de acordo com o rearranjo da economia mundial; b) abrir espaço para a valorização do capital;c) elaborar políticas de contenção da luta de classe acirrada com a implementação destes ajustes (daí a concentração da atuação do BM na "área social").
5. No campo das políticas educacionais, os principais objetivos do Banco Mundial são [5 ]:
5.1. Ampliar a oferta do ensino fundamental público para manter sob controle as pressões sociais das classes dominadas, a população pobre, e para minar a resistência e a luta de classes das classes dominadas, e para isso:
a) adequar a escola no ensino fundamental a fim de trabalhar sob os critérios da produção capitalista (critérios de produção fabril): controle da produtividade; controle e avaliação de resultados; economia de custos; produção da mercadoria - no caso, educação – ao mais baixo custo possível, buscando formas, por exemplo, como a educação à distância, inclusive na formação de professores, portanto, com baixo nível de qualidade. A função aqui é conter a luta de classes;b) no geral preparar a população "pobre" para ingressar na economia "tradicional" : trabalho por conta própria, trabalho informal, trabalho na produção de mercadorias tradicionais, organização familiar do trabalho, etc. (essa característica também se observa no nível superior, vide cursos e pesquisas em arranjos produtivos locais, economia solidária, etc).
c) no caso da mulher, propiciar por meio da "educação" melhores condições para a aceitação das políticas de controle da natalidade e habilitá-la a participar da atividade produtiva tradicional, principalmente, no setor rural.
5.2. Abrir espaço para o capital se valorizar, estimulando a privatização do ensino médio e do ensino superior.
5.3 Oferecer o ensino médio e superior, com os objetivos de:
a) conter a luta de classes, no caso da população "pobre" e das camadas médias, elaborar formas de acesso a uma "graduação aligeirada" [ 6], como no caso dos Ciclos Básicos [ 7] de três anos que oferecem o "diploma" de uma "formação geral" e "atendem" à reivindicação de acesso ao ensino superior, cuja implementação é possibilitada e estimulada pelo REUNI nas universidades públicas federais;
b) atender ao capital, estimular no ensino médio e superior áreas de ensino profissionalizante, restringindo e readequando a pesquisa às áreas que interessam ao processo de regressão.
6. Portanto, só podemos analisar o decreto do REUNI [8] a partir do "processo de regressão a uma situação colonial de novo tipo", da reconfiguração da formação social brasileira para atender às mudanças da economia mundial. O REUNI e outras medidas estão dentro da política do governo Lula, obedecendo às determinações da reconfiguração de realizar as mudanças necessárias na educação e no ensino e, aqui, no ensino superior público.
a) O seu objetivo/resultado concreto principal (caso não seja barrado pela resistência, pela luta de classes) é aprofundar o processo de reorganização da universidade pública de forma a atender/conter as pressões das camadas médias e das classes dominadas por acesso ao ensino superior (a universidade) , vendido pela ideologia dominante como cura para todos os males sociais: pobreza, ascensão social, etc., oferecendo ou uma formação generalista, que só cumpre o papel ideológico de dar o "título de doutor", ou uma formação estritamente profissional que, além da função ideológica, prepare o estudante para uma das áreas da produção capitalista reorganizada pelo processo de regressão.b) Com o aprofundamento da "regressão à situação colonial de novo tipo", o Brasil especializa- se na produção de commodities, além de transformar- se em plataforma de montagem e exportação de produtos industrializados de baixa e média tecnologia. Portanto, a formação de profissionais especializados e a produção científica e tecnológica voltada à industrializaçã o interna, característica atual das universidades públicas e em conformidade com o estágio anterior de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, fase da chamada "industrializaçã o desenvolvimentista" - não é mais necessária.
O processo em curso implica em regredir o nível científico e técnico da universidade brasileira, sucateando-a e precarizando- a no geral e mantendo e ampliando os "centros de excelência", em determinadas áreas específicas, de acordo com os interesses do capital financeiro, como as relativas a commodities, por exemplo, desenvolvimento de tecnologia de cana, de minérios, petróleo, biocombustível, etc.
7. O REUNI é uma forma específica de forçar as universidades públicas federais a se amoldarem à "regressão", aos interesses do imperialismo e das classes dominantes brasileiras, à reconfiguração do sistema imperialista e à nova divisão internacional do trabalho.
O decreto tem uma carga ideológica forte - é demagógico e populista porque propõe o aumento do acesso de camadas populares à universidade pública, porém precarizando- a, transformando- a em um "escolão", fornecendo um ensino sem o mínimo de "qualidade" que permita uma perspectiva real de emprego para a maioria dos que vão se formar. Cumpre, portanto, a função de adaptar a universidade pública à regressão, "fazendo propaganda de que abre a universidade aos pobres" e, assim, encobrindo o verdadeiro sentido das mudanças impostas ao ensino no Brasil.
8. O REUNI cumpre essa função ao propor quase que dobrar o número de vagas nas universidades públicas, determinando o aumento da relação aluno/professor de 10/1, em média, para 18/1 e impor a diminuição da retenção e evasão que garantam 90% de aprovação no prazo de cinco anos, de um lado e, de outro, acenando para "suprir" essa duplicação de alunos, com a possível ampliação, que poderíamos dizer, proporcionalmente ridícula, de verbas para custeio e pessoal de no máximo 20% do orçamento das universidades, condicionadas ainda ao cumprimento das metas e à dependência da disponibilidade do orçamento do MEC.Isso tudo também sem garantir as condições materiais – como a assistência estudantil (bandejões, bolsas, alojamento, transporte gratuito), construção e reforma de prédios, laboratórios, bibliotecas, concursos para professores e funcionários. Na prática, o necessário cumprimento da metas do REUNI, condição para liberação das verbas pelo MEC, cria as condições para a transformação da Universidade num escolão, rebaixando o nível do ensino, aprofundando o processo de regressão no ensino e na pesquisa, regressão técnica e científica, abrindo espaço para os ciclos básicos e para a "aprovação automática".
9. De nosso ponto de vista, é fundamental defender a universidade pública, fazer a defesa de mais vagas para a universidade pública e denunciar concretamente que o REUNI não atende aos interesses do povo. Uma verdadeira universidade pública, gratuita e de qualidade pressupõe qualidade no ensino, bibliotecas, laboratórios, associação da pesquisa ao ensino, bolsas de estudo e de pesquisa, alojamento, bandejão, transporte, etc. Pressupõe ainda uma Universidade que busque as soluções aos profundos problemas que atingem nosso povo e não que seja uma extensão das empresas, nacionais ou estrangeiras, que por aqui atuam.
É necessário montar nossa trincheira para combater a reforma da Universidade imposta pelo imperialismo, é necessário denunciar o caráter compulsório de adesão ao REUNI, caráter que vem sendo escamoteado pelos Reitores. Denunciar a aparência de que as universidades são livres para aderir ou não ao projeto, assim como denunciar a farsa de que a proposta nasceu da livre elaboração das universidades federais, em especial da UFBa e UnB, inspirada nas idéias de Anísio Teixeira.O ensino que defendemos, nesta etapa, pode se resumir em uma palavra de ordem de resistência: Por uma universidade pública, gratuita e de qualidade, com ensino e pesquisa voltados aos interesses do povo brasileiro.
Anexo
"Na seção "A educação superior necessária ao desenvolvimento: desafios e propostas", o documento enumera uma série de "propostas" que encaminhariam a superação dos "desafios" postos pela CNI às universidades brasileiras.
O primeiro "desafio", bastante curioso pela sua formulação paradoxal, é "universalizar o acesso à educação superior com qualidade", o que significaria, em cinco anos, elevar de "9% para 30% da população em idade universitária" (CNI, 2004). Um breve comentário: "universalizar" ainda significa "generalizar" , e não apenas atingir uma taxa de cobertura de menos de um terço da população "em idade universitária" . Mas, quais seriam as propostas para a superação desse "desafio"?
A CNI insiste em fragmentar a organização da educação superior, agora propondo aquilo que Cunha (1980) define como "fragmentação do grau acadêmico de graduação", ou seja, a "criação de cursos e áreas tecnológicas voltadas a profissões emergentes" (CNI, 2004, p. 18). A expansão de cursos superiores de curta duração seria uma forma rápida de alcançar a "universalizaçã o" da educação superior, segundo a CNI. Ainda nessa direção, o documento propõe enfrentar a evasão de estudantes a partir da "oferta de cursos adequados às necessidades do mercado e flexíveis do ponto de vista de tempo, local e espaço" (idem, p.19). Enfim, é óbvio o método de "universalizaçã o" da educação superior: flexibilizar/ fragmentar o modelo universitário e o modelo de curso de graduação.
Outros mecanismos para "universalizar" a educação superior seriam a "atração e a retenção de mestres e doutores no sistema de educação superior, promovendo a valorização e a fixação dos profissionais na academia e nas empresas" (idem, ibidem). O s objetivos embutidos na proposta parecem claros: atrelar a pesquisa à demanda do parque industrial e, simultaneamente, baixar os custos das empresas na rubrica pesquisa e desenvolvimento (P&D).
Finalmente, a CNI propõe a utilização massiva da tecnologia da informação para a vigorosa ampliação da oferta de educação superior (graduação e pós-graduação) a distância. Para agilizar a ampliação da oferta, a burguesia industrial dispõe-se a auxiliar o MEC na criação de uma "Universidade Aberta do Brasil", que vem a ser, de fato, uma instituição de ensino à distância, desde a alfabetização até a pós-graduação (idem, p. 21-22)." Grifos nossos.
RODRIGUES, José. "Frações burguesas em disputa e a educação superior no governo Lula". Revista Brasileira de Educação, v.12, n.34, jan./abr. 2007. 124 – 181
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Notas
[1] Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo [voltar]
[2] USAID é a United States Agency for International Development. MEC-USAID é a junção das siglas do Ministério da Educação (MEC) e da USAID para denominar os acordos conhecidos como MEC-USAID cujo objetivo foi o reformar a estrutura educacional Brasileira, de acordo com os interesses dos EUA, para conter a luta de classes. [voltar]
[3] É só ver o trabalho de José Rodrigues, "Frações burguesas em disputa e a educação superior no governo Lula", Revista Brasileira de Educação, v.12, n.34, jan./abr. 2007. [ voltar]
[4] "... o Banco Mundial mudou a feição de suas políticas mas tão somente de modo epidérmico, conclamando os países devastados pelas políticas de ajuste estrutural, por ele encaminhadas, a se engajarem na luta pelo alívio à pobreza" Roberto Leher, "Wolfowitz no Banco Mundial: educação como segurança" . [voltar]
[5] "No Brasil, nas duas últimas décadas, o Banco Mundial investiu mais de US$ 2,1 bilhões somente em educação, modificando o perfil, as prioridades e promovendo uma radical transformação nas fronteiras entre o público e o privado. Entre as principais medidas que o Banco incentivou em termos de políticas, é possível citar: a focalização do/no ensino fundamental, a descentralizaçã o, a criação de mecanismos centralizados de avaliação concebidos como instrumentos para a intervenção do governo e do mercado na educação, a conversão das escolas em lócus das políticas assistenciais (Bolsa Família, por exemplo), o adestramento da força de trabalho nas unidades de formação técnico-profissional , o combate ao modelo europeu de universidade, a autonomia como desregulamentaçã o das instituições universitárias para atuarem no mercado e, mais amplamente, o aprofundamento da mercantilizaçã o da educação". Roberto Leher, "Wolfowitz no Banco Mundial: educação como segurança" . [voltar]
[6] "O retrospecto das iniciativas de criação de uma graduação mais aligeirada para os pobres é suficientemente longo para comprovar que o mesmo é parte de um padrão de acumulação muito próprio do imperialismo de hoje, em que os países periféricos e semiperiféricos não ocuparão um lugar relevante na produção de conhecimento e em processos produtivos em que o conhecimento se constitui em vantagem comparativa importante." Roberto Leher, "Desenvolvimento da educação de Lula é por decreto". Jornal da Adufrj. [voltar]
[7] Uma concretização do "ciclos básicos", na verdade uma formação geral e aligeirada, é o projeto pedagógico da recém criada Universidade Federal do ABC (UFABC) como pode-se observar: "No Brasil, a criação de novas Universidades Federais, e em particular da UFABC, gera uma importante oportunidade de inovar, que não deve ser desperdiçada. Por isso, a Universidade Federal do ABC propõe o Curso de Bacharelado em Ciência e Tecnologia, que deverá ser o carro-chefe da graduação. Com uma duração de três anos, o novo Bacharelado conferirá aos graduandos um diploma que o habilitará a:a) apresentar-se ao mercado de trabalho como cidadão de nível superior, dotado de visão atualizada da dinâmica científica e tecnológica na sociedade moderna, bem como de base analítico-conceitual necessária para futura profissionalizaçã o; oub) cursar Bacharelado em Física, Química, Matemática, Computação ou Biologia, com duração mínima de um ano, na própria UFABC; ouc) cursar Licenciatura em Física, Química, Matemática, Computação ou Biologia, com duração mínima de um ano, na própria UFABC; oud) fazer um dos cursos de profissionalizaçã o em Engenharia da UFABC, com duração mínima de dois anos; ou aindae) candidatar-se ao Mestrado ou Doutorado em uma das áreas acima indicadas." - Projeto Pedagógico UFABC (Grifos nossos) [voltar ]
[8] Decreto do governo federal de nº 6.096 , de 24 de abril de 2007, que institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI. [voltar ]
Este texto encontra-se em http://www.cecac.org.br/
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