Governo Serra repassa controle do sistema de saúde a entidades privadas e tenta minar a participação popular no SUS
Eduardo Sales de Lima
Da Redação
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O governo do Estado de São Paulo, pouco a pouco, vem alterando o modelo de saúde paulista. Essa é uma das conclusões da CPI da Remuneração dos Serviços Médico-Hospitalares, instalada na Assembléia Legislativa para apurar a forma como o poder público tem remunerado os serviços prestados por entidades de direito público e privado e por hospitais universitários.
Um dos papéis centrais nesta política implementada pela gestão tucana é exercido pelas Organizações Sociais (OS), entidades privadas que recebem do Estado a concessão para administrar hospitais e as Unidades Básicas de Saúde (UBS).
Dados do orçamento paulista mostram que o governo tucano prioriza o repasse a essas entidades em detrimento do investimento com o setor público. Entre os anos de 2000 e 2007, os gastos proporcionais com as OS's cresceram 114,14%, saltando de 9,76% para 20,90% dos recursos gastos com saúde. Já os gastos com “pessoal e encargos sociais” caíram, proporcionalmente, para índices de 26,08%, saindo do patamar em 2000 de 53,58% para 39,6% em 2007.
As informações constam do Sistema de Informações Gerenciais da Execução Orçamentária (Sigeo), da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. “Os números mostram uma intenção clara do governo do Estado em diminuir seu gasto e sua responsabilidade com o funcionalismo público”, afirma Ciro Matsui Júnior, um dos assessores para a elaboração do sub-relatório do deputado estadual Raul Marcelo (Psol), incluído na CPI. A previsão é de que a entrega do relatório final da comissão, elaborado pelo deputado estadual Hamilton Pereira (PT), ocorra no dia 8 de maio.
Estado mínimo
Atualmente, sete OS's administram treze hospitais em São Paulo. Segundo a médica sanitarista Virgínia Junqueira, esse modelo de gestão da saúde pública parte do pressuposto de que tudo que é estatal é atrasado – o oposto do que apregoa o Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição de 1988 e tido como um modelo de referência mundial.
As OS's surgiram em 1998, com a aprovação do Plano Nacional de Publicização. “A idéia das OS's foi personificada no programa neoliberal de Bresser-Pereira, então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995”, relata. À época, Bresser Pereira lançou mão de uma concepção que transita entre o público e o estatal, a “publicização”. Mas “publicizar”, grosso modo, é privatizar áreas sociais chamadas de não-exclusivas – como saúde, educação e cultura.
Virgínia conta que o termo “publicizar” não é original da gestão de FHC. “Esse 'tucanês' foi inspirado nos Quangos (Organizações quase não-governamentais, traduzido do inglês para o português), que surgiram na Inglaterra”. A médica sanitarista compara a relação das OS's e o poder público com a do Banco Central e o Ministério da Fazenda. Segundo ela, o Ministério “paga o dinheiro, mas não controla nada”.
No caso da saúde, a administração pública firma contratos de gestão com as OS's. Neles, estabelece metas de produção como, por exemplo, a taxa de ocupação de leitos que precisa ser alcançada. E termina aí sua ingerência sobre as entidades privadas, que passam a gerir a infra-estrutura e o dinheiro públicos. “É um problema muito grave a interação das OS's com o SUS porque ao terceirizar esse processo de administração dos hospitais, o governo do Estado passa a não ter mais controle, mais autonomia ou gerência sobre o que vai ser executado por um determinado hospital”, diz o assessor do relatório de Raul Marcelo, Ciro Matsui Júnior.
As investigações conduzidas pela CPI comprovaram o mau uso de verbas do Estado. Uma equipe visitou os hospitais de Francisco Morato, Itaquaquecetuba, Itaim Paulista, Carapicuíba, Santo André, Grajaú e Vila Alpina. Constatou irregularidades como OS que subcontratam empresas para prestação de serviço ligadas a pessoas da própria entidade privada ou a professores das instituições de ensino mantidas pelas mesmas OS's. “Não há transparência. E essas organizações não estão submetidas à leis de licitações”, salienta o deputado estadual Raul Marcelo. “As OS's roubam dinheiro público”, afirma o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (Sindsaude), Benedito Augusto de Oliveira.
Ofensiva contra o SUS
A experiência com as OS's também está incentivando o governo tucano a abrir outra frente de batalha: minar a participação popular no Sistema Único de Saúde (SUS) – um preceito definido pela Constituição, em 1988. Em dezembro de 2007, o governador José Serra ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), com pedido de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), para derrubar a lei estadual que criou os Conselhos Gestores de Saúde no SUS.
Uma das premissas do SUS é a participação dos cidadãos na implementação das diretrizes organizativas específicas de cada hospital público. Os conselhos gestores têm a função de avaliar e fiscalizar os serviços de saúde prestados à população. Sua composição contempla a participação de usuários e funcionários.
Segundo a CPI, nenhum dos hospitais geridos por OS's visitados durante a investigação possui um Conselho Gestor que siga as diretrizes da Lei 8142,de 1990. Com a ação no STF, José Serra tenta padronizar esse descumprimento da norma. “É uma tragédia para o serviço público e rompe com os princípios do SUS”, salienta o presidente do Sindsaude.
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) também afirma que as OS's e as OSCIP's descumprem a legislação sobre a administração pública e os princípios e diretrizes do SUS. Um parecer da entidade enfatiza que “é flagrante a inconstitucionalidade e a ilegalidade” de ambas. No entanto, ainda com base na política neoliberal de Fernando Henrique, Estados como Tocantins, Rio de Janeiro, Bahia e Roraima também passaram a transferir serviços de saúde a entidades terceirizadas.