13 de maio...
A ficção abolicionista reverbera na educação superior
"Vi um pretinho, seu caderno era um fuzil."
Negro Drama - Racionais
Nos quarenta anos da morte de Martin Luther King, grande líder negro norte-americano, presenciamos outro 13 de maio. Uma data simbólica que faz referência ao negro no Brasil. Assinada em 1888, pela princesa Isabel, a Lei Áurea foi ensinada para as gerações posteriores, como forma de manutenção da hegemonia branca e rica, sob o véu da liberdade do povo negro escravo. Quanta bondade...
Seria tamanha a dissimulação ao falar em liberdade do negro neste imenso país. Seu protagonismo na pobreza, na falta de oportunidades e na discriminação tem raízes históricas profundas e que estão relacionadas à formação do povo brasileiro e de sua riqueza. A queima da casa dos estudantes negros na UNB, o caso da escola de medicina da UFBA, as tropas brasileiras no Haiti, a notificação de focos de trabalho escravo, o não reconhecimento dos quilombos, exemplificam o cenário atual, não muito diferente de séculos atrás...
Mas não podemos falar deste 13 de maio desvinculando- o da mentirosa ideologia burguesa, com a qual estabelece uma relação íntima. Não seria prudente retirar desta data detalhes como a suspensão de escravos que vinham da África para o Brasil por parte da Inglaterra limitando o número de escravos a cada dia, leis como sexagenário e ventre livre quebrando o vínculo de escravo formal com todos os nascidos a partir de então, revoltas contra os senhores e formação de quilombos fortalecendo a resistência negra, detalhe de que o Brasil fora uma das últimas nações ao formalizar a abolição, entre outros. Temos aqui a responsabilidade de dizer que a abolição na prática já se fazia real. A lei nada aboliu. Nada mais que uma esperta jogada da elite colonial para pousar de libertária.
E conseqüentemente a república, vez que a transição do sistema econômico determinou alterações nas relações políticas, incluindo as escravistas, detentora do papel de grande contribuinte na reversão da condição do negro sem condições objetivas – sem terra, dinheiro, escola, etc. e subjetivas – visto como um ser inferior e inútil, mero objeto, não apenas não cumpriu com essa reversão, como aprofundou a condição de exclusão negra com a imigração de brancos europeus para o trabalho, agora livre. O negro, de acordo com sua condição na sociedade, aparece como segunda opção, certamente. Chegando ao ponto de alguns preferirem continuar nas fazendas em troca de comida e abrigo. Ou isso ou nada. Quantas escolhas...
O histórico racista deste país com a batuta do Estado através de suas instituições e suas políticas de desenvolvimento deve ser resgatado ao menos em datas como essas com um objetivo de constituir um melhor entendimento da negação da população negra no acesso e na permanência das escolas, principalmente no nível superior, nas surras e extermínios policiais, nos sinais de trânsito, nas moradias que combinam barrancos e barracos, nas piores condições até mesmo dentro da classe dos trabalhadores. A exclusão do negro é, sobretudo, dupla: pobreza e racismo.
Contudo, algo que é pertinente ao negro, reforçado pelo seu histórico de sobrevivência à escravidão e exclusão, é a resistência. Resistir tem sido a palavra de ordem para todos os negros e negras ao longo destes anos no Brasil. Contra o mito da democracia racial e qualquer tentativa de subjugação a movimentação negra tem ganhado espaço no conjunto da luta de classes. Os avanços do negro na saúde, na educação, nos espaços de poder, embora tímidos, são fundamentais, seja pela situação excludente diária, seja pela re-oxigenação que as conquistas trazem para a continuidade da luta, seja pela essencialidade do negro enquanto protagonista da revolução socialista brasileira, vez que tem na história seu lastro de sustentação para cumprir essa tarefa.
Acontece que dentro da movimentação negra, como é próprio também da cultura negra, a diversidade de pensamento e prática política são inúmeras. Assim como existem "capoeiras" e nem tudo é "macumba", o movimento negro tem diferentes correntes, que atualmente se diferenciam muito em dois blocos – uma majoritária e que se aprofunda nas políticas públicas como um grande caminho (e não que seja ruim, inclusive pela dívida histórica do Estado), mas que esquecem as ruas como principal palco da luta priorizando os debates institucionais e um segundo, minoritário, que se preocupa em fazer a denúncia do racismo mascarado e contribuir com a emancipação do negro enquanto negro a partir do debate político e organização do povo negro. As conquistas institucionais como a lei que obriga o ensino da cultura africana nos currículos escolares são meras mediações. Importantes, mas pontuais. Precisamos de alterações que sejam substanciais. Algo como uma revolução.
Muito dessa degeneração atual de alguns setores do movimento negro veio de braços dados com o governo Lula. Um governo que foi eleito pelo povo e governa para os empresários. As contradições estabelecem a reflexão sobre a potencialidade deste governo para possíveis avanços do movimento negro. A saber, secretaria federal de combate ao racismo sem verbas. Como avançar no financiamento dos projetos? Tropas brasileiras no Haiti, afrontando a autodeterminaçã o dos povos e desconsiderando o primeiro país latino a abolir a escravidão. Falta de pressão para aprovação das cotas no parlamento brasileiro, como teve em outros projetos, como a reforma universitária privatista, fechamento de rádios comunitárias atacando o direito à organização, principalmente da periferia, etc. A proximidade com este governo ou um posicionamento vacilante são cruciais para se localizar na luta do povo negro. E nesse sentido devemos ser firmes no combate ao racismo e ao governo Lula.
O ataque mais recente à população negra dentro desse contexto tem sido a priorização da cana-de-açúcar e do agronegócio/latifú ndio em detrimento da produção familiar e da perseguição à grande propriedade e aos assassinos dos canaviais. Fora o fato de nos remontar ao ciclo colonial da cana, num processo de insistir no Brasil como um país exportador primário, alheio e dependente da produção tecnológica, em conjunto com as questões subjetivas da escravidão que retornam a todo tempo nas exaustivas horas de trabalho no corte da cana, com trabalhadores negros chegando a morrer de cansaço nas longas e infinitas diárias, soma-se a essa desumanização e impunidade o ataque direto à alimentação do brasileiro, com destaque mais grave para o negro, na medida em que o etanol e o biodiesel disparam no mercado e a produção da pequena propriedade que alimenta o povo fica em segundo plano. Mais uma face do desenvolvimento da riqueza do branco através da exploração do negro.
A educação é ponto que podemos citar na compreensão desse debate de emancipação do negro, bandeiras históricas, relação entre movimento e governo, avanços na luta; é temática que congrega muitos elementos importantes na compreensão do momento e das possibilidades da luta negra. É preciso, antes de qualquer coisa, perceber a educação em quesitos como o processo de conhecimento e autoconhecimento, mola do desenvolvimento científico e intelectual com vistas a uma superação da situação de dependência econômica e cultural, espaço a ser investido pela população negra na sua ótica de disputa político-ideoló gica, não limitada à sala de aula, ainda mais se tratando da questão racial e sua exclusão educacional formal, direito e não serviço. Essas poderiam ser diretrizes de uma educação emancipadora e libertadora.
É preciso estudar o "13 de maio" para discutí-lo como mito, como ficção. É preciso conhecer a história desse país e de seu povo. A educação pode ser uma ótima ferramenta, como pode ser apenas mais do mesmo – reprodução. Pode servir à emancipação ou à exploração. O processo de privatização recai justamente sobre essa segunda utilidade da educação. Concebendo a educação como serviço ou bem que pode ser comercializado, e não como direito do homem ao aprendizado, ao conhecimento, os diplomas podem ser vendidos, taxas inúteis são cobradas e o conhecimento mercantilizado e concentrado nas mãos de uns poucos. Poucos esses, não coincidentemente, brancos. É, portanto, essa lógica neoliberal de retirar direitos e diminuir a participação do Estado naquilo que lhe é devido, como o financiamento da educação, inimiga do povo negro.
Mais interessante, é observar que a educação superior brasileira reflete esse processo. E como os setores que disputam os rumos da educação no país se portam diante da implementação das políticas. O processo de expansão da iniciativa privada no âmbito educacional não é novo e está atrelado logicamente à queda expressiva da qualidade operacional e científica da universidade pública com o corte de verbas. À medida que sucateamos o público, fortalecemos o privado de modo que a ideologia reinante colabora com a falácia da eficiência do setor privado. Com o advento nacional do PT em 2002 as marcas dessa privatização estavam com os dias contados. Estavam...
Quando falamos em posição frente aos governos e em relação a esse governo temos de fazer isso numa orientação política da nossa discussão e acúmulo sobre a emancipação do povo negro e a construção de uma nova ordem social. Não por outro motivo qualquer. Nesse sentido, se um governo pontua sua discussão em conjunto com o capital, através do neoliberalismo, repetindo e aprofundando todos os erros dos governos anteriores, com total reafirmação do status quo, estabelece referência naquilo que devemos combater. Estamos no meio de uma onda gigante de reforma da educação superior nesse país. Uma reforma que não passa perto das reivindicações históricas do movimento negro.
A reforma universitária do governo Lula, baseada numa lógica neoliberal acima colocada, mostra para o movimento negro dois caminhos bem distintos: o de abandono das trincheiras em nome de cargos e defesa de medidas pontuais e igualmente racistas na raiz, e o da discussão ampliada nos diferentes espaços pontuando a necessidade de romper com o racismo, mas não sem o rompimento do sistema capitalista. Sistema que rege os princípios desta reforma universitária, a exemplo do ENADE, que ranqueia as universidades na competitividade por recursos, as fundações que injetam capital privado na universidade pública, ferindo a autonomia e sugando recursos humanos e físicos, PL 7200 que permite a participação do capital internacional nas universidades brasileiras, mas principalmente o PROUNI. O povo negro deve estar atento.
Com a apropriação da bandeira histórica da democratização da educação superior e para "atender" a uma demanda do povo negro o governo, lembrando que este é apenas um dos itens do grande pacote que privatiza a educação superior, cria o PROUNI – um programa de bolsas inteiras e parciais para estudantes com baixa renda e negros nas universidades privadas. Pasmem: nas universidades privadas. Não há mais fortalecimento para o setor de venda do conhecimento do que o governo financiar suas empresas-universida des. E o pior: através do sonho de toda uma negritude que clama por justiça social e pressiona por conquistas para seu povo – o sonho da universidade aparece tão forte que esquecemos de enxergar o porque de o governo não ter criado essas bolsas na universidade pública simplesmente para custear os empresários. Um verdadeiro crime.
Os negros não querem ascender socialmente e se tornarem os novos exploradores repetindo o que sofreram um dia, desta vez do outro lado. Querem que não haja mais classes para que tenham que ascender ou descender. A igualdade social é possível e mais do que necessário. Não visualizam a educação superior apenas com sala de aula e com o objetivo de conquistar um diploma e aumentar as estatísticas governamentais. O individualismo não interessa ao negro, mas sim a coletividade. Querem produzir conhecimento que sirva como instrumento de libertação dos irmãos e irmãs negras e que esteja voltado para a transformação do atual estado de coisas. Como a iniciativa privada, que está a serviço do lucro do dono que a mantém, pode nos oferecer um conhecimento e ações que rompam com a estrutura de classes e de raça? Qual a possibilidade de uma universidade privada, voltada para o mercado de trabalho como é de sua essência, frente a universidade pública, considerando aqui também a sua finalidade, nesse caso de servir ao povo, contribuir com a construção de um projeto alternativo ao que vivemos?
A resposta dessas perguntas e a atual situação da população negra em mais um 13 de maio imediatamente nos leva a negar tal proposta, inclusive porque nunca foi bandeira negra, como alguns queriam levantar. Nunca reinvidicou- se outra educação que não fosse pública. Se a completa maioria da universidade privada serve apenas aos diplomas e precisamos mais do que eles para avançar, sem contar que o projeto não garante a permanência do estudante, vez que a bolsa não cabe aos livros, alimentação ou transporte, e ainda ilude a juventude negra com o sonho da universidade pública como inserção no mercado de trabalho e melhoria das condições de vida, quando temos 60% dos estudantes formados que não trabalham em suas áreas, reforçando o individualismo da sociedade e em nada contribuindo para a sonhada e necessária revolução, colocamos firmemente: não ao PROUNI.
E o desgaste foi sentido. Surgiu o debate da política de cotas, do estatuto da igualdade racial e outros dispositivos normativos, assim como o PROUNI, no sentido de continuar a debater no âmbito da política pública e da ação afirmativa. Dessa vez com um diferencial: as cotas desta vez se referem à educação pública. O oposto do que o PROUNI representa. Mas as cotas até hoje não foram aprovadas, por mais que a discussão volte à cena como na atualidade. O governo não lançou a mesma pressão e a discussão por vezes foi arrefecida. O movimento negro, em parte, mostrou a independência e saiu às ruas e entrou nas universidades públicas exigindo o direito à educação superior pública. Esperar o governo que financia os empresários com base nos sonhos alheios não é do feitio do movimento negro combativo. Hoje as cotas são uma realidade em muitas universidades públicas brasileiras, embora a disputa ainda esteja com muitas barreiras.
A educação superior se mostra, portanto, detentora de elementos como cooptação e acomodação de setores do movimento negro em torno de determinadas ações, combatividade de outros, falta de prioridade do governo com a luta negra, mas não com os empresários, apropriação e distorção de bandeiras históricas, palco de disputa consistente, complexo e estratégico para a emancipação da população negra. Não é o único espaço. Assim, como a mídia ou o parlamento, ou qualquer outro espaço de disputa de poder, a educação é mais um campo e que precisamos avançar, para não cair apenas nos pontos específicos deixando de lado o mais importante e que está na raiz, como também nos denuncismos baratos e descontextualizados e abandonarmos a construção do projeto socialista e de libertação negra.
Barricadas Abrem Caminhos – SE
Construindo a Frente de Luta contra a Reforma Universitária